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Alô, além

Alô, além

Meu telefone tocou. Era um número que eu conhecia, mas que jamais poderia esperar que ainda existisse. Atendi ressabiado.

“Oi, filhinho!”

Tomei um susto gigantesco. Trote? Que brincadeira sem graça da zorra.

“Sou eu mesmo, ora.”

Eu nada entendia, sentido não fazia. Afinal, havia um tempo eu tinha conduzido sua caixa de não mais ser. Ele provou. Mandou fotos jogando tênis num parque, num dia de sol.

“Mas… como?”

Eu tentava criar meada naquilo. Sua voz chegava, conversava, mas quando tentava explicar… Um interruptor do consciente foi ligado, e despertei de um sono profundo, assustadíssimo. Ouvi novamente a voz de meu pai, vi seu rosto, e ele estava feliz.

Demorei um tempo para pegar no sono novamente. Queria ter por mais tempo a lembrança de sua voz ali perto, que chegou tão efêmera, pegando-me de guarda baixa e sem preparo.

Diz meu amigo Daniel Fonseca que minha voz lembra a de meu pai. Recentemente foi seu aniversário. Liguei, ele que há pouco voltou às origens e em Salvador se instalou saído de São Paulo, atendeu.

“Oi, Dandan!” Saudei-o pelo apelido que tanto não gosta. Ou gosta, na verdade. Disse-me ele, num café em portentosa e sobreprecificada padaria paulistana, que assim meu pai a ele se referia. Dizia “não gostava nem um pouco, o que fazia ele só me chamar assim o tempo inteiro”, ao mesmo tempo que exibia um descarado sorriso. Ah, gostava, sim, senhor! Está querendo enganar quem, Dandan? Ele, matando de primeira, já emendou um “rapaz, é impressionante como sua voz agora me fez lembrar de seu pai. Fiquei todo arrepiado aqui. Por um segundo achei que era ele!” Conversamos, demos risada. Ele, então, pede para que eu fale com sua mãe, do mesmo jeito de antes. “Tem que ser o ‘oi, Dandan’, certo?“ “Certo.” A mãe dele pega o telefone, eu solto a frase da ressurreição. Ela silencia, entrega o telefone de volta para ele. Ele retoma “ih, rapaz, quê que eu faço? Minha mãe está chorando agora.”

A esperança do retorno impossível não se esvai. Ela emerge exatamente no momento do não preparo, dos braços baixos, do peito aberto. Aquela fração de tempo em que realidade e fantasia se misturam e não conseguimos discernir se fato ou se faz de conta. Devastador é o efeito provocado, pela intensidade do que se instala. Num primeiro momento, a incredulidade, a euforia!, a esperança no leme do pensamento; noutro, o consciente toma para si a direção, diz que não pode ser. Dizima e esfarela a esperança. E assim vamos ao chão, porque nossa esperança se vê impossível, não mais é. Vemo-nos imóveis e impotentes diante da estabilidade impassível da morte.

Não entendo que meu pai viva por mim, tampouco por mais alguém. A eternidade da memória se faz no compartilhamento, está em todos em que ele tocou. Para cada um, talvez gatilhos sejam mais poderosos que outros, uma frase que só ele dizia, o sobrenome, um gosto parecido, no que nossos cérebros aproximam as referências não necessariamente próximas, mas unidas porque assim tem que ser, porque assim as coisas fazem sentido, porque assim se completam e se encaixam.

Pego-me torcendo para que o sonho volte. Que na fronteira da realidade eu o encontre, ouça sua voz ao vivo, veja-o, conversemos, troquemos confidências e atualizações, as novidades boas e as não tão boas. É o alento pelo surreal contato do possível disfarçado de realidade.

No fim, trata-se apenas de um sonho entranho a dizer e me relembrar que ele faz falta. Muita falta.

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