Lendo agora
Carpe diem

Carpe diem

A Lapa, bairro encravado no coração da Zona Oeste da cidade de São Paulo, é um lugar lúdico. Um quê de vintage. Em um bom pedaço dele não há prédios; as ruas são margeadas por casas e calçadas arborizadas.

Ainda ontem, um carteiro decidiu fazer uma rápida pausa para repor energias enquanto comia amoras direto no pé. Poucos metros à frente, um senhor consertava o interfone de sua casa. Já uns metros antes, outro senhor lia e via a vida passar sentado num banco na varanda, enquanto seu cachorro aproveitava a proximidade de seu companheiro para latir força, braveza e poder. Saudei o senhor, que ria da algazarra de seu animalzinho.

As casas são as trincheiras da pièce de résistance contra o mundo moderno. Muitas não possuem grandes muros, alarmes, ou quaisquer outros aparatos de segurança. Um certo ar interiorano domina o ambiente; mesmo com o barulho do trem a ecoar. Mesmo com o comércio popular da 12 de Outubro ali perto; mesmo com o ruidoso Mercadão da Lapa a abastecer o comércio da região.

Andava eu pela rua paralela aos trilhos do trem. À minha esquerda, na calçada de mesmo lado onde eu seguia, uma casinha térrea. Um muro de pequenas e finas espigas de metal, não mais do que um metro e vinte de altura. O jardim muito bem cuidado. Um canteiro em um cantinho com rosas, uma pequena árvore, banco de metal, mais outras tantas plantas, todas garantidas no zelo.

Um Honda Fit parava no que imagino ter sido depois de um dia de trabalho, sol prestes a se pôr numa agradável tarde de inverno, ensolarada e carregando reconfortante temperatura amena, com uma leve brisa a acariciar a pele.

Uma senhora, algo entre 60 e 70 anos, saltou do veículo. Usava um uniforme por baixo de um casaco de linha que cobria até as coxas. A saia estendia a barra e a renda do casaco, não sei se de tricô ou de crochê. Uma rasteirinha completava-lhe o estilo um tanto monocromático, como exige o manual de conduta de uniformes e padrões.

Um senhor, que aparentava a mesma idade, havia aberto o pequenino portão. Vestia um cardigã bege sobre camisa branca, uma calça de sarja azul puída, chinelas de couro sobre meias de algodão brancas, óculos de grau pendurados pela corda no pescoço.

Ela descendo do carro, ele trancando o portão.

Cumprido o rito mecânico da função, entregaram-se ao seguimento afetivo.

Caminharam para se encontrar. Cada um com um sorriso maior do que o outro. Ambos erguiam os braços, como criança correndo para abraçar. Havia alegria genuína por se verem depois de dia de labuta. Abraçaram-se num longo abraço fraterno, puro. Deram-se uma bicota, o beijo possível pela idade, ficaram mais alguns segundos de rosto colado.

Deram-se as mãos, ainda um de frente para o outro. Perguntavam-se como o dia tinha sido, mas o que importava era escutar, então ambos perguntavam, mas nenhum respondia. Riam-se do impasse. A bela hesitação de que tanto se orgulhavam: para ambos, a prioridade era o outro. Ela, a forasteira, então, balbucia descrições do dia desbravando o mundo externo, para alegria de seu velhinho. Ainda de mãos dadas, rumam para dentro de casa.

Permaneci espectador, parado na rua, de uma cena de amor explícito.

Afinal, quanto amor há de haver para que, depois de décadas de companhia, o reencontro depois de um dia de trabalho seja construído de tanto afeto, tanto companheirismo, tanto carinho, tanta felicidade? No rosto, estampada em letras garrafais, a certeza de que o ponto alto da jornada se fazia no instante.

Quanto amor há de haver para que a companhia de uma vida inteira seja ainda o melhor momento de seu dia?

Talvez, a aposentadoria dela tenha finalmente se consolidado depois de uma longa estada de dedicação ao trabalho. Talvez neto ou bisneto tenha, em choro, vindo ao mundo. Talvez coincidisse um aniversário simbólico, de namoro, de casamento… Talvez qualquer outra notícia boa tenha caído sobre eles.

Ou talvez, e aqui reside a beleza em sua forma mais original, seja apenas mais um dia. Um dia como outro qualquer. Um dia depois de um dia de trabalho, com sol prestes a se pôr numa agradável tarde de inverno, ensolarada e carregando reconfortante temperatura amena, com uma leve brisa a acariciar a pele, num jardim bem cuidado numa casinha térrea de muro quase-cerca, recortado por pequenas e finas vigas de metal, elevando-se a não mais de metro e vinte.

Um dia como outros tantos tão felizes quanto, porque renovam-se num carpe diem suave, abrindo-se para que a companhia de uma vida inteira permaneça, sem rasuras, sua maior alegria.

***

Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.