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Carta do Milton N

Carta do Milton N

Certa vez, discutíamos sobre algum tema que, de tão relevante, não consigo me lembrar exatamente qual era.

Mas ele foi citado. E o impasse foi criado: desfaço ou disfarço?

Resolvi, então, escrever-lhe. Há tempos não o víamos, tínhamos saudades daquele homem negro, de voz doce e marcante, fraco, mas vivo como nunca. Lembranças de minha infância com sua presença nos almoços de família aos domingos ficarão para sempre guardadas como momentos especiais de minha formação. Apesar de próximo, ele tinha sumido propositalmente, necessitava ser resgatado.

Como ele sempre demonstrara aversão a e-mails e outros ferramentais tecnológicos, escrevi-lhe uma carta, à moda antiga, estilo ABNT e tudo, tal qual ensinado no primário.

E para minha surpresa, dias depois, ouvindo a ele próprio no toca-discos recém-adquirido, recebo sua resposta. Doce e marcante. Como sempre fora.

E ele dizia:

Meu caro amigo Gabriel,

A sua dúvida com relação à minha música, Bailes da Vida, é uma dúvida comum a grande parte dos brasileiros que gostam de minha obra, em especial desta canção que a mim gera grande apreço e estima.

Agradeço por ter me enviado um pedido de esclarecimentos sobre esse assunto, há tempos vivia na expectativa de que as pessoas voltassem a discutir as letras de minhas músicas e, em maior grau, de que elas utilizassem essas palavras no seu cotidiano. Não há, para um músico, bem maior do que enxergar aplicabilidade a suas letras, músicas, harmonias e todo o resto na vida das pessoas.

O correto é “cantando me desfaço”. Durante muito tempo fiquei em dúvidas se deveria utilizar disfarço ou desfaço. Apesar de encarnar uma personalidade quando no palco, não posso negar que esta, na verdade, é parte de mim escondida; agora, a apoteose de subir ao palco para cantar é altamente recompensadora, mas ao mesmo tempo cansativa. O esforço empregado é tamanho, maior que a minha própria pressão por perfeição, que termino optando por uma conseqüente absoluta exaustão. Desfaço-me como corpo físico e refaço-me como alma leve e nova, de uma certa forma mais evoluída pelo aprendizado contínuo que cada apresentação traz.

Espero ter ajudado.

Um forte abraço a você e não se esqueça de transmitir as minhas saudades a seu pai, diga-lhe que em breve irei visitá-lo na Boa Terra.

Milton N.

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