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Caruru de Cosme e Damião: o milagre da multiplicação do quiabo

Caruru de Cosme e Damião: o milagre da multiplicação do quiabo

O caruru de Cosme e Damião é espelho da alegria e receptividade do povo baiano.

As escrituras sagradas do sincretismo religioso baiano comentam do dia em que do talo de um quiabo houve fartura para uma vila inteira. O rito foi perpetuado em cada canto da velha cidade da Bahia, não como dogma, que é coisa feita para ser quebrada, mas como tradição, nascida para ser exaltada. No caruru de Cosme e Damião fez-se o milagre da multiplicação.

Diz o livro que umas das primeiras exibições do milagre aconteceu em casa de Dona Moça que foi preparar a iguaria, mas viu-se em cerco: tinha acabado o quiabo na feira. Com não mais do que um punhado para alimentar tanta boca, preparou a panela e encheu de acompanhamento para saciar vontade. Pôs-se à mesa com vatapá, farofa de dendê, feijão fradinho e até pipoca e bala de mel para agradar o paladar peculiar do rebanho de seus sete meninos.

Dei-me conta de tal obra quando ainda infante. Calhava de no 27 de setembro, coincidentemente ou não, irmos para a casa de meus avós. Logo ao lado do portão tinha Pretinha, vizinha de muro que se fazia notada de existência apenas para que evitássemos chutar a bola para o lado de lá. Do baba da bola à baba do quiabo, quando percebia, estava eu na cozinha de Pretinha, com prato servido generosamente, cercado por um verdadeiro enxame de gente que comia, bebia e falava alto.

Assim foi que o caruru de Cosme e Damião virou espelho e maior símbolo da reconhecida receptividade do povo baiano. Cunhou-se até motivo para tristeza e solidão, causa maior de depressão na Bahia: a falta de convite para um caruru que se preze. Vai se aproximando o fim de setembro e você pode ver os sintomas espalhados por todos os cantos da cidade. Escuta-se o lamento choroso que enternece. Pergunta a alma caridosa e preocupada, “Que cara é essa, pai?” Para ser respondida com olhos que nem força têm para se erguerem “Não me chamaram para caruru nenhum, véi…”

No que se convém pensar que convite que não é feito é aperto demais na mente do indivíduo. Afinal, se o quiabo se multiplica em milagre – onde comem quatro pessoas come o bairro todo com fome e levando as tapaué carregadas embora – o motivo há de ser outro. Além do mais, se convite não há, sujeito há de passar na frente de casa exalando a essência por todos os poros. A tentação provoca arrepios e passa a ser questão de autodeterminação, cheia de abuso e ousadia. “Dona da casa me dê licença que esse caruru é cheiroso!”

Se organizar direito, todo mundo transa um caruru retado.

Assim, está sacramentado na pedra dos mandamentos de boca-a-boca do sincretismo religioso baiano que o pecado original é recusar um chamado. Na quantidade, pule de galho em galho. Registre-se também que festa da boa é com caruru completo – exceção aberta a um acarajé vezeiro. E que o caruru de Cosme e Damião carimba em alto relevo que a alma do povo baiano continua livre, leve e solta, numa elevação de espírito que denota o que é que a Bahia tem de melhor.

Enquanto tiver caruru, ainda seremos baianos praticantes.

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O caruru de Cosme e Damião forma a tríade de ouro do sincretismo religioso baiano, junto com a Lavagem do Bomfim e a Festa de Yemanjá.

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