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Dia 6: Mutá, sempre

Dia 6: Mutá, sempre

Mutá, 30 de janeiro de 2017

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Ah! Mas Mutá de novo? É, danado, Mutá de novo. Mutá vai ser na base do sempre. Na base da overdose.

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Tinham passado 4 minutos das cinco e meia da manhã quando os primeiros raios de sol vararam a janela do apartamento de Angélica, e eu já pronto, esperando na sala para mais uma ida a Mutá. Nem bem chegamos ao ferry boat, embarcávamos no Pinheirinho rumo a Bom Despacho, e de lá para a vila de pescadores mais querida do Brasil.

Passamos em frente à antiga casa de meus avós, onde tantos verões foram vividos, hoje sem nem um tijolo para fazer-lhe igual.

Mundo muda, mas Mutá nem tanto.

Seguimos para a praia, onde encontramos a maré vazando, e quase ninguém na areia ou água, a não ser pescadores. Daí descobri um detalhe que pode traumatizar memórias tão cuidadosamente e forçosamente transformadas em alegria: arrocha.

Algumas barracas estavam instaladas, coisas do verão, como Davizinho já tinha alertado que seria. Uma delas tocando músicas horríveis num som ainda mais horrível, que chiava e pulava. Sofrência era o que eu sentia. Numa música, uma mulher que pegou o marido no motel quando dizia que ia para o futebol. Noutra, a raiva do homem que foi embora e ela até se ofereceu para leva-lo para a rodoviária. Tome ressentimento, vinganças, um horror!

Abstração, a palavra de momento.

No que o rapaz se cansa do truncado da tocada, resolve desligar o som por um tempo. Que alívio! Depois voltou com um reggae, bem mais baixo, e que só pelo fato de não tropicar já era mais agradável.

Ainda assim, trocamos de barraca. Fomos para a barraca de Maria Helena, que o filho abria. Decidimos sair para caminhar pela praia.

– Você que é filho de Maria Helena? Avise a sua mãe que o neto de Dona Maria está aqui!

A maré recém-vazando proporciona algumas visões interessantes. Já no início da caminhada, vemos muitos milhares de sirizinhos caminhando pela areia, felizes pela água que não inunda mais suas tocas e pelo alimento trazido pela maré. Ando com bastante cuidado, e em parte me sinto nas aventuras de Gulliver. Aqueles seres ali, minúsculos, correndo desesperados da pisada mortal do gigante. Assim também devia se sentir Angélica. Nem bem passada do metro e cinquenta, conta até os milímetros e qualquer outra medida que lhe eleve a autoestima.

O mangue recém-vazado faz o pé afundar, quase a metade da canela dentro d’água. Cruzamos com marisqueiras em sua labuta. Agachadas na areia, raspavam a areia de mangue à procura do chumbinho, o sustento de tanta gente na vila. Mais ao fundo mariscavam também as garças e os guarás, aves de mangue que aproveitam a baixada da maré para lhes saciar a fome.

Andamos até o cansaço bater.

Uma leve chuva nos alivia o calor, já escaldante antes mesmo das 10 da manhã. Nuvem passageira, numa garoa que nem minuto dura e nem molha.

Na volta, um banho de mar de água morna, calma, tranquila, sem pressa.

Voltamos à mesa, e Maria Helena junta-se a nós. Diz ela ter sido criada por minha avó, dos 13 aos 19 anos. Em paralelo, Angélica troca informações com um tio meu, que afirma nunca ter ela vivido com eles, em nenhum momento. E que também minha avó dela não lembra. Como minha avó tem Alzheimer, não devemos confiar tanto assim nesta parte.

Minha avó, no entanto, por uma temporada, levou dois meninos filhos dela para a casa deles em Salvador: Daniel e Agnaldo, irmãos de Cleomenes, ainda longe de nascer. Se verdade ou se coisa que a cabeça cria, por enquanto, fico com a segunda parte.

Ela chama Giovane para sentar conosco. Me apresenta como filho de Paulo, neto de Dona Maria e Ionan.

– É Leonan o nome de meu avô. Ionan é o filho mais novo.

Aonde. Conhece é nada! Penso.

Giovane, sim, teve contato com a família. Quase da mesma idade de meu pai e de Volney, lembra de eventos da cidade e de como eles brincavam juntos. Lembra bem de meus avós e de cada um dos filhos. Ele se senta conosco. Conta as histórias, dentre elas, a famosa história do Opala de seu Leonan, primeiro carro a entrar na Vila, para espanto de uns e regozijo de outros.

– Eu era muito amigo de seu pai. A gente brincava muito junto. Quando eles vinham para cá era uma danada. Meu pai, Bacurinha…

Interrompo.

– Seu pai é quem?

– Bacurinha.

– Mas rapaz! Seu pai está ficando famoso!

Conto que a história do enterro dele vai varrer o mundo. E pergunto do circo, história que Davidson tinha me contato ainda um dia antes.

– É verdade… Ele foi mesmo. Oxe, mainha retou!

E rimos muito.

Giovane é gente simples, de jeito simples. Conta da ilha da frente, dos veranistas e dos personagens para sempre marcados em Mutá: Dona Dina, a gorda mãe-de-santo, Seu Vavá, Seu Edgar, Bitônio… Os mesmos, que parecem para sempre encrustados na memória inclusive de gerações futuras. E até que meu avô foi seu cliente da gráfica onde trabalhava em Salvador!

Ele pergunta se já almoçamos, se não queremos ir almoçar com ele. Convida já se desculpando da simplicidade do que seria servido. Recusamos agradecidos. Ele é deste tipo de gente, que convida para almoçar na casa e fica sentido se não formos. Quer nos levar à casa de Lulu, que também era muito amiga da trupe toda de jovens hoje já passados dos 50. Diz que ela adoraria me ver, e provavelmente seria verdade.

Despede-se também feliz por ter achado um short que esqueceu num barco, e já dava como perdido. Para essa gente, para a felicidade precisa de pouco.

O campo da vazante se faz visto, e o ritual de jogar bola se inicia. Primeiro, gol a gol. No mais de gente, hora do baba. Um grupo de pescadores volta do seu trabalho.

Tradições mantidas.

E mesmo no sem nada para fazer, de repente – e quem houve de fazer assim o adiantado da hora –, tínhamos de ir embora.

***

Não importa quantas vezes retorne, Mutá vai sempre reservar uma surpresa especial. Uma nova curva, um novo bicho, uma nova pessoa. Há sempre um jeito diferente de se olhar. Eu nunca serei o mesmo em cada volta, o que já garante cada evento como único.

Aquilo que vem carregado de infância tem sempre um gosto diferente.

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