Lendo agora
Duelo de imbecis

Duelo de imbecis

É sempre com grande alegria que recebo convite de um grande amigo para um churrasco. Certeza de tarde agradável, minha mulher brinca de boneca com a mulher dele – certa feita, sentaram-se as duas no chão para falar de esmaltes, brincos e acepipes estéticos, no que fomos obrigados, mesmo no atrasado da hora, a abrir mais uma gelada a esperar. Prioridades, amigos, prioridades. Cada um se arma de seu violão, começa a farra, que dura horas. Sai uma carne, galera vai juntando, cerveja gelada, uma festa.

Neste último domingo, no entanto, fui atormentado. Ele me deve uma tarde de domingo.

Aos fatos.

Você já presenciou um duelo de imbecis?

Ah, não sabe o que é um duelo de imbecis? Eu explico.

Duas pessoas, simultaneamente, duelam para que cada uma frase dita, cada uma expressão, cada palavra soe absurda, estúpida. Imbecil. Não há prêmio, nem haverá passeata pelo Orgulho Imbecil na Paulista – embora eu acredite que o povo sambando com o pato amarelo há uns anos se assemelha muito a isso, mas não mudemos de assunto – fazem por amor à causa imbecílica.

Ding! É o gongo começando a luta do século.

O careca de barba hipster – porque, claro, havia de ser personagens caricatos – comenta das atrocidades cometidas no Canadá: “não ia ficar aguentando e esperando aquele povo na British Columbia admirando campos de morango.” O de cabeça raspada, logo começa a expor o seu amor pelas armas: “meu sonho é apontar uma Glock na cara de alguém.”

(Nota do editor: nunca, digo NUNCA conheci alguém que seja a favor das armas que seja pacifista. Na verdade, quer fazer do cano a sua própria truculência, ferramenta de intimidação. O objetivo não é proteção, é agressão mesmo, disfarçada de “defesa de direitos”.)

São chatos. Chatos, chatos, chatos. Ninguém mais conversa. Ninguém mais fala. Mas imbecil não entende de climão, e continuam.

O filhote de nazista – o careca sem barba branco como a neve – comenta dos amigos que matariam por ele, basta uma ligação. O outro, começa a ofender o um quando surge uma discussão produtiva e relevante se Taiwan era ou não território chinês. Um comenta orgulhoso de como o irmão é mentiroso. O outro não fica atrás, e às favas o irmão do um, conta ele suas mentiras deslavadas. Fazem chacota chamando a namorada de um de “comunista”, se dizem direitistas ferrenhos, mas são funcionários públicos estudando para concurso para ganhar mais no funcionalismo público.

Cada frase é um desconsolo. Um soco no estômago.

Numa vã tentativa de parar a zona, pegamos o violão. Resolvamos na base da canção!

A esposa do meu amigo pede uma música. “Aquela que um verso fala de pretos e pobres.” Ela se refere a Haiti, ícone de Caetano e Gil. O sem pêlos zurra “Isso aí não! Não gosto de música de preto e pobre.”

Neste momento me sinto fisicamente mal. Dor de cabeça, ânsia de vômito. Meu amigo tenta contornar, “muita música excelente foi escrita por pretos e pobres”, mas como todo bom imbecil que se preze, o que está sendo contornado conserta piorando.

Ao fim e ao cabo, estão os dois fazendo “piadas” ofendendo os donos da casa, zombando da comida que outros fizeram e da própria casa onde estão. O hipster avisa “vamos embora!”, e meu amigo, pacífico e solícito na hora errada, compactua “agora não, fica para a sobremesa.” Eu, nesta hora, grito por dentro. Meu corpo gesticula, indignado. “Fica, não! Rapa fora! Já vai tarde!”

Eles, no entanto, decidem realmente ir. Um deles se despede da esposa de um outro amigo que ali estava, prometendo passar lá no apartamento deles para tomar uma cerveja. Ela nem consegue responder, sorri desesperada e constrangida, no rosto um “carece, não.”

No longe que estão, finalmente, me liberto.

Solto um palavrão, sinto o peso do mundo cair dos meus ombros. Volto a conversar, a interagir. Quando comento, o óbvio para todos que ali estavam: NINGUÉM suporta qualquer um dos dois.

O meu amigo, sempre político, tenta contornar. Falando sobre um deles “ele tem um bom coração. Ele não fala essas coisas por mal.” A esposa completa “talvez ele nem se dê conta do que está falando.”

Penso no tanto de absurdos que a gente tolera no mundo em nome das ditas pessoas de “bom coração”. Quantas esposas maltratadas apanham dos maridos e dão exatamente esta mesma desculpa? Quantos pais e mães não se desculpam pelos filhos criminosos, que, no fundo, têm alma pura e coração de ouro? Veja bem, não estou comparando as situações, estou apenas exemplificando como esta desculpa não significa absolutamente nada, a não ser uma mentira que a gente se conta para fingir que está tudo bem.

Pois, não, não está tudo bem.

As pessoas “de bom coração” não têm sonhos de apontar armas na cara de ninguém nem se colocam como superiores a quem quer que seja. Intolerância e discriminação são características, ao contrário, de pessoas altamente nocivas, ruins: são características de imbecis.

Com o timing perfeito, minha mulher, que tinha ido descansar logo cedo, acordou exatamente após eles terem ido embora. Não presenciou quase nada do espetáculo de atrocidades que ali se fez. Que destreza!

Tem coisa que é melhor a gente fingir que não existe.

Dessa gente eu quero distância.

E caso você esteja se perguntando, no duelo, deu empate. Não existe melhor ou pior, muito menos vencedores, quando se ultrapassa a linha da intolerância.

***

Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.