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Ferry boat

Já fazia muito tempo que eu não embarcava num catamarã para atravessar as calmas águas da Baía de Todos os Santos rumo à Ilha de Itaparica. Desde a nossa saída de rumo a Campo Grande, em 1996, foram 11 anos até que eu voltasse a Salvador. Saí garoto e voltei outra pessoa, menos baiano, o que, confesso, demorou ainda mais uns anos para que eu voltasse a ser.

Durante este período, veja a que ponto a vida em São Paulo te leva, dizia “sou baiano, mas não pratico” (alô, seu Franciel). Não pratiquei porque a vida, porque o crescimento, porque qualquer coisa que justificasse.

A redescoberta foi na base da restauração, reescrita por uma memória afetiva inundada pelo que se faz Bahia. É impossível não se render. Mesmo não sendo, muitos querem praticar. Por que haveria eu, abençoado pela terra e lá nascido, de renegar tamanha responsabilidade?

O terminal em Salvador tem pouco espaço para carro na parte de dentro. Então, se tem alguém querendo cruzar pro lado de lá, facilmente a fila invade a Avenida Eng. Oscar Pontes. Gente saindo pelo ladrão, com seus porta-malas cheios de colchões, travesseiros no banco de trás e uma alegria que não se esvai nem na espera.

Quem olha de fora tem a certeza de que vai demorar horas. E demora mesmo. Porra, como demora. Porque, apesar de poder comprar com hora marcada, o legal mesmo é torrar debaixo do sol, descer do carro pra comer um lanche com café no boteco do lado, ouvir o menino vendendo A Tarde, saber que a Feira de São Joaquim te alimenta, basta chegar. É na fila do ferry boat que se faz um dos módulos do intesivão de baianidade. Abra a janela e comece a jogar conversa fora com o vizinho de porta, seu melhor amigo da vida até começarem a andar os carros, no que vai você parar com outro vizinho para que se recomece uma nova amizade.

A ida nunca me provocou muita coisa. Chegávamos a Mutá, no mais das vezes num Fusca que fazia com que a espera fosse angustiante. Como é ruim a vida sem ar-condicionado e a daqueles com pai que adora uma prosa, porque criança trancada no calor não quer conversar não, senhor. Quer mais é encher o saco do irmão, pirraçar a irmã, essas coisas construtivas.

O que me deixava absolutamente fascinado era a volta. Não sei se por fato, ou se por seletividade, conseguíamos sempre o horário perfeito.

O tempo em Mutá corria lento. Num mundo sem iPad, da televisão espiando no vizinho e do rádio que nunca levávamos, arrumar o que fazer era tarefa que requeria criatividade. Eu ficava horas pulando de canoa em canoa. Catando chumbinho. Pulando da ponte, quando ainda na ponta dela se podia chegar. Cuidando de queimadura de água-viva. Reclamando de um barco a motor que passava ao longe e agitava as águas até então quase paradas. Tentando entender as marés, quando enchia, quando vazava. O mundo sem supervisão adulta era cheio de descobertas.

Daí que na volta a mente vai tentando guardar tudo isso. Um emaranhado de novidades, notas mentais e desejos de que nada se vá. Pois é no ápice deste momento que o mundo parecia parar. O sol se punha na Ilha, na popa, e eu ali debruçado, virado para a cidade, na proa. O dia passava o bastão e a cidade assumia seu posto com orgulho. Era um movimento orquestrado, cada pedacinho se fazendo visível, o brilho da noite explodindo. À esquerda, o Bomfim. À direita, subindo o morro, se via a Igreja de Santo Antônio e, com uma boa dose de esforço, a janela vermelha da casa de minha vó. Se pudesse paralisar um instante, seria aquele. Era hipnotizante. Não havia lugar mais lindo do mundo, nem haveria de ter: aquele do encontro do que tinha sido e não se queria esquecido com as luzes na velha cidade da Bahia, como a dizer, “pode vir, porque aqui também há magia”.

A cabeça da gente reconstrói lembranças, expurga o de ruim, reencaixa o de bom, realça o espetacular, e parece que o paraíso ali se faz.

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