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Jamile e Benício, o casal anti-Copa

Jamile e Benício são um casal padrão por onde quer que se escolha olhar. Classe média tradicional, sonha com o carro mais luxuoso, com aquele apartamento com varanda gourmet e móveis planejados, com um Romero Brito na parede, com um Golden Retriever, um casal de filhos e férias em Orlando. Inundados em dívidas obrigatórias e fundamentais para o crescimento do país, se consideram felizes. E como gostam de se dizer, ‘acordados’. “Não somos alienados como quase este país todo”, afirmam com um certo nojo no canto da boca e um orgulho incontido de sua decerta superioridade moral. “Cumprimos nosso papel de cidadãos.”

Com a Copa do Mundo se aproximando, uniram-se numa causa nobre: a evangelização da população ignorante. “Como pode essa gente perder tempo com a Copa do Mundo enquanto tem tanto problema no Brasil? Simplesmente não dá! Sem educação, gasolina subindo, hospitais caindo aos pedaços, e o povo pensando em hexa!” Dizem eles, quase em uníssono, sempre concordando um com o outro. Esta insatisfação foi o que levou os dois a mais do que somente reclamar. Resolveram, bravamente, tomar ação: reclamar em público.

Procurando abranger uma audiência maior, Jamile e Benício definiram fazer das mídias sociais seu campo de batalha. Do teclado, sua arma. Da indignação e mau humor, o combustível para prosseguirem. Varrem a internet, comentam em todas as notícias, participam de todos os fóruns. Quando questionados se podem se passar por inconvenientes, dão de ombros. “Não nos importamos. Afinal de contas, estamos certos.”

Esta campanha ferrenha contra a alienação alheia atraiu muitos iguais. De tanto externarem suas opiniões, se aproximaram de vários iguais. “Não estamos sozinhos.” Um grupo de iguais se formou. “Tem um grupo no Whatsapp especialmente feito para isso. Somos os moderadores”, dizem, líderes de um movimento.

Com a aproximação da estreia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, em pleno domingo, Jamile e Benício tiveram uma ideia genial.  Propuseram no grupo e começaram a discutir com os colegas-em-despertar de organizarem um evento único. Um marco na história dos acordados: uma festa para comemorar o fato de odiarem a Copa. Claro, durante o jogo do Brasil.

Combinaram horário, comes e bebes. O local seria o apartamento deles. “Abrimos a parede da cozinha pra sala, cozinha americana, sabe? Mais confortável pra todo mundo.” No cardápio, coisas como fondue e limonada suíça. Uma única regra foi estabelecida, inviolável: é proibido torcer pelo Brasil. “Não podemos compactuar com uma CBF corrupta e uma Copa que, além de comprada, é um antro de desvio de recursos públicos. Não seremos enganados, jamais!”

No dia, às treze horas, os convidados começaram a chegar. Traziam um vinhozinho delícia, um quitute top. Vestiam roupa neutra. Não queriam parecer nem coxinha nem mortadela, afinal, são “contra tudo que está aí”. A tevê de LED, comprada numa promoção imperdível em doze vezes sem juros no cartão de crédito daquela startup super in, ligada na Globo, emissora de que zombavam o tempo inteiro.

Começou o jogo. Neymar pegava na bola, “mimado!”, “cai-cai!” Thiago Silva espantava um ataque helvético, “chorão!” Não encontravam adjetivo para o Philippe Coutinho, mas odiavam-no assim mesmo. Nem o Tite escapava, “chato pra caralho!”

Quando o tirambaço de Coutinho abriu o placar, houve gritos. Parecia comemoração, mas juram de pé junto que não era. Era revolta. E se ouvia aqui um “vendidos!”, acolá um “agora é que este país não vai pra frente!”, outro mais ali “enquanto comemoram, os políticos estão roubando!”, até um “melhor mesmo seria se fosse eliminado logo para acordarem para a realidade deste país!”

No intervalo, tomando suas lagers belgas compradas em promoção vantajosa do pack de 12 no mercado, atualizavam-se na revolução. “Não basta falar, gente. Tem que digitar!” Todos assentiam e tomavam mais um gole, seguros de seu bem fazer.

Quando o segundo tempo começou e o empate logo veio, os amigos explodiram de felicidade. “Volta pra casa!”, “Acaba logo essa pouca vergonha!”. Na controvérsia da falta não marcada na hora do gol, regozijaram. “Toma! Quem manda querer ser malando? Bem feito!” No discutível lance de pênalti em Gabriel Jesus, ápice da felicidade!, cunharam o canto que juram entoar em qualquer momento daqui pra frente. Foi decidido no instante que este seria o mantra do grupo durante a Copa. Em uníssono bradaram: “JUIZ! LADRÃO! SAÚDE E EDUCAÇÃO!”

O jogo acabou com todos com a sensação de dever cumprido. Cumprimentaram-se satisfeitos na despedida. “Não esqueçam: toda área de comentários é uma oportunidade de despertarmos mais gente para a nossa causa! O país precisa da gente!”

Jamile e Benício já estão preparando o próximo evento, sexta-feira contra a Costa Rica. “Como o jogo é às 9 horas da manhã, vamos fazer um brunch divino, com tudo o que a gente tem direito. Até gorgonzola. Adoramos! Chique, né?”

O Domingo, no entanto, ainda vai longe. “Primeiro temos que entrar no Facebook e mostrar ao mundo até que ponto somos contra a Copa! Dá trabalho, mas alguém tem que fazer alguma coisa. Depois, né, tem o Show dos Famosos. A gente não perde um!”  Olham-se ternamente. Estão certos de serem a esperança do Brasil.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Ou não.

Crônica publicada no HuffPost Brasil em 17 de junho de 2018. Link AQUI!

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