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Lata velha

Quando eu era pequeno em Salvador, comecinho dos anos 90, a gente tinha um Fusca. Fusca 71 (ou 73?), já ali na casa dos vinte anos de vida. Bege com detalhes em ferrugem. Em anos de carro, naquela época, seria como se ele tivesse 96 anos. Um senhor idoso, já debilitado.

Um carro típico dos anos 70 no Brasil: motor, lataria, lanternas e faróis, bancos, volante, câmbio, pedais e nada muito além disso.

Darei uma amenizada na situação: em cidade de praia, a maresia destrói aquilo que de metal. Com isto em perspectiva, não era para tanto.

O Fusca era uma alegria! Um divertimento!

Era o bicho que entregava as edições da Bolsa de Veículos. Saía a cada concessionária assinante do negócio que finalmente ia nos tirar da lama, mas que contribui com mais terra e água pra gente misturar por conta própria. Negócio próspero não se utiliza de carro velho por humildade, todos sabiam bem disso. Rodava muito o Fusca. De Salvador a Feira de Santana, de canto a canto.

O motor não aguentava muita coisa. Para subir as ladeiras íngremes da velha cidade da Bahia, pegava embalo e seguia na torcida de chegar até o final. Caso contrário, era o vexame de deixar o carro descer para tentar de novo. O medo na espinha quando vinha daquelas em V, sabe? Uma ladeira descendo e outra subindo na sequência. Se o embalo não fosse suficiente, corria-se o risco de deixar o carro ali no meio para todo o sempre. Abandona que não tem mais jeito.

Com os anos de uso, o carro foi de desfazendo. Aqueles bancos rasgados, com molas saindo, tecido que rasgava a pele. O carro pequeno, e eu já grande. Caber no carango era tarefa árdua para menino em fase de crescimento excessivo.

Ficou grave quando o assoalho do carro começou a se desmanchar. Primeiro, e mais gravemente, no banco de trás. A gente sabia que mudava de faixa quando víamos a faixa sob os nossos pés. E quando chovia, então?

– Olha a poça!
– Aeeeeeeeeeeeeee!

E todo mundo levantava as pernas para não se molhar com a água que espirrava para dentro. Pense.

Aos poucos, o assoalho do banco da frente também começou a sumir. O carro dos Flintstones era o nosso. Passaram-se milhares de anos e o que garrâmo de evolução era um motor.

Um dia, barulho de coisa caindo.

– Pai, que barulho foi esse?
– Sei lá, responde ele, carinhoso.

Olho para trás, e vejo um cilindro vermelho de metal sacolejando pela pista.

– O extintor taí? Pergunto, sem muita esperança.
– Estava, responde meu pai. Não tá mais.

Tinha chegado a hora.

O Fusca foi levado à sua morada eterna num ferro-velho da vida. Imagine que o novo dono ainda usou o carro, capotou o Fusca. Ficamos sabendo muitos anos depois.

Veja só: a dureza quando passa se torna graça.

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