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A loja de discos da Afonso Sardinha

A loja de discos da Afonso Sardinha

Na rua do lado de casa tem uma loja de discos de vinil, destas em que tempo decidiu não passar. Numa casa antiga assobradada, geminada na proximidade, trabalhada na antiguidade. Na parede com tinta descascada, uma leve infiltração. Quadros improvisados, em vidro protegidos, capas de discos cujas bolachas já não mais tocam.

Chia ao fundo, pelo autofalante das caixas de som de antanho, com fios dependurados cruzando de cabo a rabo a comprida e estreita cava, um jazz em piano sublime. Acompanhava-o, como violoncelo ao violino, solavancos suaves da sujeira na agulha, ou do risco que já veio de fábrica, para dar aquela tonalidade vintage à prensa.

À espreita, no empoeirado armário na altura da cintura, em que se dedilham os quadrados encartes dos vinis, Belchior e Toquinho, irmãos de bigode, Gonzaga sorrindo, Caetano de tanga. Dorival olha o mar, Sinatra em coletânea, logo ao lado de Bethânia. “Se quiser ouvir, pode testar”. Assim me apalavra o senhor de cabelos brancos sentado no arremedo de balcão logo na entrada, com quem troquei um leve aceno de cabeça quando entrei e um quase sorriso.

“Porter?” Pergunto.

“Bom ouvido!”

Na parede do fundo há um ressuscitório de toca-discos que um dia foram topo de tecnologia. Todos à venda, ao gosto do freguês, do mais retrô ao mais insosso grafite. Um deles gira o Porter, o Porter da caixa de som presa por um prego enferrujado e torto, com fios dependurados, conexão de quase século do registro ao presente. Presente que é senão passado.

“Você tem um toca-discos?” O senhor – ele honrando o vintage em personagem de si mesmo – se chega ao meu lado. Impossível distinguir o cheiro que exalava o velho homem da poeira guardada de todo o estabelecimento. “Tenho”, respondo sorrindo. Ele sorri satisfeito. “Você já ouviu isso aqui?” Ele aponta para um Bing Crosby, Bing Sings Whilst Bregman Swings, intuindo meu gosto pelo jazz. “Conheço.” Realmente conhecia, embora só de nome. Não poderia pescar sua voz numa fileira de cantoria.

“Ah!” Ele suspira. Sem hesitar, busca o disco e sobrevoa a agulha até Cheek to cheek, clássico do cantor americano. A doce voz do americano ecoa pelos falantes, compensando em suavidade a estrutura mambembe.

“Heaven / I’m in heaven / And my heart beats so that I can hardly speak / And I seem to find the happiness I seek / When we’re out together dancing cheek to cheek”

O senhor despeja uma lágrima solitária.

Ficamos em silêncio, lado a lado. Eu respeitando sua memória, ele absorvendo a chance de reviver um sei-lá-quando que lhe é tão caro. Quase no final da música, ele suspira alto, como se recuperando do baque, bate com o pé direito contra o piso, uma leve palma, “Quer um café?” Tira o Bing, guarda com cuidado dentro do encarte. Busca o Belchior, e Velha Roupa Colorida se ouve por entre as quatro paredes.

“Você não sente, não vê / Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo / Que uma nova mudança em breve vai acontecer / O que há algum tempo era novo, jovem / Hoje é antigo / E precisamos todos rejuvenescer“

Ele coloca uma xícara de um café já morno e já adocicado. O cearense cantando, eu sentindo e vendo que para aquele senhor o tempo havia passado. Seus amores viam-se perdidos. Era o antigo em meio à modernidade, os bolachões contra os Spotifys e as mídias há muito renovadas.

“No presente a mente, o corpo é diferente/ E o passado é uma roupa que não nos serve mais”

Vaga pelo passado, talvez em busca do controle de sua história, que o veste desconfortavelmente, ao mesmo tempo em que é a única pele capaz de cobrir-lhe a sua. A dicotomia dependência versus liberdade a lhe atormentar a mente.

“Assum preto me responde  / o passado nunca mais.”

***


Conto publicado na Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021, páginas 34 a 36.


Capa da Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021.

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