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O defensor das palavras

O defensor das palavras

Jurava tentar se conter. Especialmente depois do último episódio quando corrigiu o diretor de um grande banco com relação ao emprego correto da expressão “a princípio”. Erro imperdoável, onde já se viu corrigir um diretor de banco, durante uma reunião com clientes?

“Queria que você estivesse lá. Iria perceber exatamente sobre o que estou falando”, diz ele, justificando-se. Ainda era estagiário, na época. Mas tinha personalidade formada.

Gabava-se de ter lido Proust, Sartre, de Beauvoir (segundo ele, essa sim a cabeça pensante da relação), Nietzsche, e Coelho para passar o tempo. Não precisava de mais nada, apenas das palavras.

“Vivo das palavras e a elas me dedico”, falava com orgulho!

O hábito das palavras tornou-se, assim, um vício. Não suportava ouvir erros gramaticais simplórios, concordâncias, conjugações, preposições mal utilizadas… E como sofria! Uma época chegou a utilizar tapa-ouvidos; mas necessitava das palavras. Refugiou-se no campo, ouvia música clássica e lia livros de edições perfeitas; mas e os amigos? Ou melhor, e as intrigas?

Acompanhou com sofrimento ímpar o crescimento do negócio de centrais de relacionamento telefônico e o seu conseqüente gerundismo; passou a odiar Jânio pela sua mais famosa frase, mesmo que atribuída, embora este fosse figura das mais interessantes; envergonhava-se de presidentes eleitos e reeleitos; não assistia à televisão.

Como era de esperar, dedicou-se ao estudo do Direito. Como era delicioso ler aqueles livros absolutamente impecáveis, era isso o que queria fazer da vida! Poder falar para dezenas de ignorantes, centenas talvez, com seus termos imaculados, pouco utilizados e praticamente desconhecidos. Pairava sobre a cabeça daqueles que franziam suas testas sem entender palavra sequer, muito menos uma sentença; era superior; juiz não poderia aceitar o fato de não entender tão portentoso português. Ganhou causas, fez fama e fortuna ainda muito novo.

Sua primeira parada cardíaca ocorreu aos 35 anos de idade. Caso complicado, cuidava dos interesses de um grande banqueiro às voltas com esquemas de lavagem de dinheiro e, embora sua especialidade fosse Direito Tributário, aceitou.

“Nunca perdeste uma causa, inventa umas palavras bonitas e estamos feitos. 30% do valor da acusação?”, argumentou o banqueiro. Pouco ligava para o banqueiro e seu dinheiro; o pretérito indiscutivelmente perfeito e imperativo mais do que justo o atraíram. “Perdeste, inventa. Raro.”, pensou. “Aceito”, disse na hora, sem pestanejar.

Mas o processo corria lento, o cliente enfrentava problemas, via perspectivas ruins. Até que um dia, mergulhado em procurar alternativas para o caso, comentou que precisava falar com o tal banqueiro com urgência. O prestativo estagiário do escritório já de seu próprio sobrenome ofereceu-se: “Quer que eu ligo?”. Não resistiu.

Seu estado postergou o processo, refletiu muito no entre-vidas, voltou com a solução. Mas o estagiário fora demitido sumariamente. Cometera um erro dos mais graves, dentro de sua própria equipe, um erro de português. Inaceitável.

Mais 7 anos correram.

Casou-se. Teve filhos, Sócrates, o mais velho, e Platão, o mais novo. “Coerente, não?”, dizia.

Mas novo caso apareceu. Novamente o banqueiro. Aquele banqueiro.

Aceitou, fez ainda mais fama e fortuna após o caso de 7 anos atrás, e apesar da safena, sentia-se novo. Não cometeria o mesmo erro. Seria impecável com seu time.

Montou uma equipe com o que de melhor havia no mercado. Nada de estagiário, queria mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos, ultra-doutorandos, todos reunidos para formular a mais perfeita defesa jurídica da história. E assim fez; e assim se fez.

Mas o caso insistia-se complicado, mais uma vez.

Veio a data da decisão. Ouvia sua própria respiração. Até que as palavras do juiz saíram, devagar, dolorosas.

A primeira derrota. A única. Aquela.

Correria no plenário, ambulância chegando, socorro médico urgente.

Internou-se no mais renomado hospital, com o que havia de melhor disponível para si, tanto em equipamentos quanto em equipe médica.

Lá, sua esposa acompanhava tudo ao seu lado.

Até que ela orou. Implorou. Amava-o imensamente.

E pediu. Afirmara ser muita dó tal figura importante e amante de seu país, povo e cultura, ter fim tão trágico.

Não resistira; cometera o erro pela segunda vez. Debaixo de sua própria asa, de seu terreno, de sua zona de conforto.

Ela, que ainda orava ajoelhada junto à cama, sentiu um leve toque no braço. Era ele, que reunindo suas últimas forças, a fez ouvir suas últimas palavras. “Muito dó. Masculino”.

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Esta crônica foi escrita em 2007, finzinho do ano, aos 18 de dezembro. É o texto pelo qual tenho mais apreço, sabe, orgulho mesmo. Tão demasiado que nunca tinha publicado, veja que coisa. Foi livremente inspirado em um amigo, figura única, que conheci naquele mesmo ano.
 
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