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Os sons
Tinha o do pino da panela de pressão, cozinhando o feijão logo cedo, atividade de todo dia, como a garantir a normalidade da vida. Se tem feijão, tudo segue em ordem, tudo dentro dos conformes. Criança precisa desse tipo de coisa.
 
Tinha a Ave Maria de Schubert, religiosamente às 18 horas em todas as rádios. Ah!, essas maravilhas de quando em que o literal encontra o metafórico: religiosamente. Quase sempre o sol estava se pondo, um resto de luz ainda se despedia, reticente, na velha cidade da Bahia.
 
Tinha na rua o vendedor de taboca e seu triângulo. O auge do dia era comer taboca. Ouvia o som e seguia no passo do forró, sonhando com a rara oportunidade de aproveitar a iguaria.
 
– Voinha, bora comê taboca?
– Não.
 
Ô, desinfeliz que eu ficava. Rito diário, porque hômi precisava tabocar e eu precisava sonhar.
 
Por lá também passava o amolador de faca, com seu apito estranho e inconfundível. Nunca pude aproveitar de seus serviços, mas via seu carrinho com sua grande correia pedimentar, a grande pedra de amolar que girava freneticamente, as faíscas que subiam, quase como fogos de artifício e como magia, e tudo quanto é tesoura e faca cortava até pensamento depois. Só o brilho do atrito do metal na pedra já valia a visita.
 
– Tem faca aí, Voinha?
– Oxe, pra quê?
– Pra amolar, ué!
– Faz-se de besta.
 
Dava de ombros e, a mim, as costas.
 
Tinha também o vendedor de acaçá e seu excepcional bordão comercial. Entenda, tem hora que o simples resolve. Coisa do Da Vinci, que disse que a simplicidade é o último grau de sofisticação. E passava a gritar:
 
– A-CA-ÇÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!
 
Veja bem, imaturo que era para entender as coisas da simplicidade, nem dava bola, e só fui saber o que era acaçá muito recentemente.
 
Muito ao contrário era aquele que enchia os olhos de vida, a boca d’água e a alma de alegria. Estava em tudo quanto era canto. Um empreendimento gigantesco, imaginava eu, estava era na cidade toda! Ia a gente com seu isopor escrito com caneta hidrocor do lado, fita no ombro, sorriso no rosto e um calor da porra.
 
Natura teve aula com a Capelinha.
 
– Capeliiiiiiiiiiiiinha! Ói eeeeeeeeeeeeeu!
 
E a meta da vida era adivinhar a sequência bradada de sabores, que, segundo a minha memória, sempre começava com coco e amendoim, chegava no creme holandês e em algum momento passava pelo caju, pelo cajá, pela mangaba, pelo imbu (assim, com i, que nem imbigo), e por mais uma explosão de sabores, porque pedir um picolé era experimentar cantos com essência de outros. Aquela mordida de amendoim com cajá. Aquela lambida de coco com creme holandês. Aquela chupada de umbu com mangaba. Tudo no mesmo palito. Quer coisa melhor?
 
Morar em casa abre o mundo da rua, seus sons e sua gente, para o menino que dele nada sabe.
 
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