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Quando eu me achei grande

Quando eu me achei grande

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Sempre tive vocação para uma altura que ultrapassava, em larga escala, a média dos baianos. Altura que, inicialmente, causava-me vergonha.

Estudei por muitos anos em colégio de freiras, o Sacramentinas, na velha cidade da Bahia, quase nos fundos do Teatro Castro Alves. Se algumas aulas eram ministradas por freiras em hábito, dali para saudações na capela da escola era um pulo. Eu ali no meio, já muito mais alto que todo mundo, tal qual um farol a guiar a linha de colegas de classe. O desconforto era tremendo. Eu sem saber o que fazer, aquela louvação que nunca me fez muito sentido, senta, levanta, ninguém dando a deixa, Rosana nas alturas e se eu não a via, lá do alto de meus olhos, a tal da Rosana, quem haveria de vê-la? Eu tinha tanta certeza do meu destaque na multidão que instintivamente meus ombros se contraíam, minha coluna se dobrava e eu me fazia menor por curvado.

Os estirões me deixaram inapto para uma série de práticas esportivas. Se o handebol e o basquete foram descobertos anos mais tarde quando a Bahia já minha não mais era e altura seria, por fim, um trunfo, era o futebol que comandava as aulas de educação física. Ficava sempre para o final na escolha dos times e lá estaria eu na quadra, ostentando um shortinho Gerasamba de fazer corar Carla Perez, expondo cambitos raquíticos que a anatomia ousava chamar de pernas.

A era analógica dos anos 80 impedia a comparação instantânea para identificação do ridículo. As roupas eram chamativas e espalhafatosas, de preferência acompanhadas, no caso das mulheres e de alguns homens, de um permanente que cheirava a Kolene e escorria pela testa. Anos em que usar bigodes era não apenas socialmente aceitável, como também exemplo de masculinidade.

O pior, no entanto, eram as fotografias. Era necessário comprar filmes, acertar a entrada na máquina fotográfica pré-histórica e torcer para ter dado certo na hora de revelar. Invariavelmente, no meu caso, dava errado. Não sei se por tique ou se por distração, eu sempre saía de boca aberta. Mas não uma boca aberta como se estivesse falando ou sorrindo. Exibia eu boca aberta que entra mosca, acompanhada por olhar de peixe morto para o nada, absorto. Esta pose constante fez com que um tio me apelidasse de Zonzoca. À perfeição, digo eu. Aquela cara que eu fazia era cara de zonzoca, claro.

E lá estou eu na formatura da alfabetização, hoje primeiro ano, de boca aberta. Foto no Natal do Shopping Iguatemi? Zonzoca. Coloca meu irmão do lado para ver se eu me arrumo: abestalhado. Eu teria rido de mim, só não ria porque era eu.

Nestes registros históricos eu era enfeitado com um corte de cabelo que parecia ter sido projetado para combinar com aquela cara de zonzoca.

– Boa tarde, meu amigo, tudo bom? Pode cortar o cabelo do meu filho?

– Sim, claro. Quem é o seu filho?

Meus pais apontariam para mim, sentado num sofá sujo olhando para fora observando sei lá o quê; boca, como sói concluir, aberta.

– Ah, claro. Temos aqui o corte zonzoca. O que acha?

O cabeleireiro abre um grande livro de cortes de cabelo e aponta para o retrato de um menino-amarelo-criado-pela-avó que ilustrava em página inteira um tradicional corte meio de lado, levando os fios para a outra banda, num cenário quase-emo, mas tão besta quanto.

– Perfeito.

Quando moleque, o maledicente que me cortava o cabelo ficava nos arredores da Siqueira Campos, ali onde não se sabe se é Santo Antônio ou se já é Barbalho, antes de chegar no ponto de ônibus, quase no meio do caminho a partir da padaria. Era destas barbearias de bairro de antanho. Piso de cerâmica e azulejos descascados, fotos de mulheres e calendários pelas paredes, cadeiras pré-históricas com o couro azul turquesa carcomido e espuma aparente. Senhores de idade deixando-se afeitar deitados com a jugular exposta e coberta por espessa camada branca, pela qual hábil senhor ainda mais velho deslizava sua afiada navalha. Conversavam folgados, riam muito, alguns certamente passavam ali o dia de papo solto antes que ele fosse preso para o jantar.

Era neste recinto exclusivamente masculino que chegava minha avó, de mãos dadas comigo, para que me cortassem o cabelo. O comandante das tesouras em ofensiva contra meu couro era um moreno de cabelo batidinho penteado com pata-pata, fino bigode e fala mansa. Ele aprontava sua cadeira: buscava uma madeira que encaixava sobre os braços para que eu, criança, pudesse sentar em cima e estivesse ao alcance de seus dedos expandidos em lâminas. Clec, clec, clec, os cabelos caíam e eu abandonava meu visual abestalhado-desgrenhado para Danoninho-de-pera-coisa-fofa.

Foi alguns anos mais tarde, contados a partir da primeira vez que ali finquei os pés, impossível dizer exatamente quando, que fui dado, oficialmente, grande demais para a tábua elevatória. Fui conduzido, então, à cadeira. Nada, a partir daquele momento, me separava dos clientes de grosso bigode, exceto, claro, o fato de que eles tinham bigode. Deveriam tratar-me distintamente como senhor a partir daquele instante. Ora, na cabeça de criança que precisava até ontem de assento extra para que algo tão banal pudesse acontecer, sentar na cadeira era como escalar o Everest ou correr uma maratona. Era o auge do momento em que eu podia dizer: agora, finalmente, sou grande.

– Mas corta do mesmo jeito de sempre, viu? – avisou minha avó para o cabeleireiro, que sorriu, “deixa comigo!” e voltei para os meus alfarrábios contemplando o que quer que me chamasse à atenção, o mesmo zonzoca com o mesmo cabelo, mas agora grande, sentado na cadeira, como todos os outros.

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