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Retiro de Carnaval

Retiro de Carnaval

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Carlos estava ansioso por causa da oportunidade que tinha pintado para ele. Sua namorada, Juliana, atenciosa e pensando no seu bem, comprou para eles um pacote para um retiro de Carnaval no interior de Minas Gerais. Lugar afastado, no meio das montanhas, com muito verde, natureza, temperaturas amenas e muita luz.

Ele tinha começado nesse mundo por ela, já experiente no tema.

― Você vai adorar, amor. Olha aqui, ó – e entrega o panfleto com as atividades do centro – vai ter cardápio 100% vegano, horas de meditação, yoga na montanha, momentos de silêncio, atividades de contemplação, você mesmo arruma seu quarto, limpa e lava seus pratos, cuida da cozinha e dos banheiros…

― Que lindo!

Não estava lá muito empolgado, mas seu ânimo foi melhorando com a excitação de sua parceira, que distribuía amor pelo seu companheirismo.

Compartilhavam também a boa nova com quem lhes interpelasse com a pergunta padrão pré-Carnaval:

― E vocês? Onde vão passar o Carnaval?

Enchiam o peito, ela orgulhosa, ele seguindo-a:

― Vamos para um retiro mara no interior de Minas. Ficar quieto, sabe?, cuidando da alma. Fugir um pouco do agito do Carnaval para se reconectar com a gente mesmo, entende?

E os amigos assentiam com a cabeça, impressionados com a determinação do casal, enquanto contavam dos planos mais profanos que tinham em mente.

***

Chegaram ao retiro cedo na quinta-feira de Carnaval. Foram recebidos por um senhor de meia idade, de manto cobrindo o corpo, careca de cabelos compridos sobre um rosto magro, barba grisalha, e sorriso contagiante.

― Babu Sram Papa?

O senhor apenas sorriu em afirmação, apontando para a plaquinha com seu nome grudada em seu roupão.

― Ele está em seu momento de silêncio – disse chegando a Mônica, assistente do guru, e que, aparentemente, comandava a parte administrativa da coisa.

E continuou:

― Deixe-me levá-los ao seu quarto. Acomodem-se, decansem um pouco. Às 10:34h alguém vai aparecer na sua porta para que vocês conheçam nossas acomodações.

O quarto era bem simples, sem luxos, nem regalias, nem mesmo um lençol que não coçasse. Tinha um beliche, uma mesinha com cadeira simples de madeira, uma janela basculante e um ventilador. Nada mais havia. Nem sequer banheiro, que era compartilhado, no fim do corredor, à direita. Monica prosseguiu:

― O guru acredita que interações carnais prejudicam a evolução espiritual.

Então exigiu que entregassem os celulares, tabletes e computadores e quaisquer outros aparatos tecnológicos. Carlos e Juliana ofereceram os celulares, para ver a anfitriã acenar-lhes com a cabeça e imediatamente ausentar-se, fechando a porta enquanto o casal acomodava suas pequenas maletas.

Às 10:34 em ponto ouviram alguém bater na porta.

Abriram. Deram de frente com um funcionário do retiro, também em seu momento de silêncio, que apenas sorriu e os convidou para o salão principal, onde encontraram mais de 80 pessoas, todas em silêncio, plaquinhas com seus nomes. Por cerca de uma hora andaram por todos os aposentos do lugar, conhecendo as instalações e os mandamentos. Cada sala tinha seu próprio papel com suas regras, liam com cuidado, devolviam, e seguiam para o próximo ambiente.

Mais tarde, após almoço e um rápido lanche da tarde, de volta ao humilde aposento, anestesiados pelo clima bucólico e tranquilo do local, continuaram o pacto de silêncio e dormiram uma das melhores noites de suas vidas, cada qual em sua beliche, nem consentir aos desejos da carne.

***

Às 04:45h despertaram naturalmente para cumprir as atividades do dia. E as fizeram com grande alegria. Era sexta-feira de Carnaval, apenas ontem lá chegaram, mas já não tinham noção de que dia era.

Contemplaram a alvorada, cozinharam, limparam, meditaram, fizeram yoga, exercícios de respiração, pilates. Cozinharam de novo, descansaram nas redes sob as árvores do pomar, comeram umas frutas, jogaram restos orgânicos na composteira, praticaram uma atividade de fortalecimento da empatia, prepararam o café, fizeram seu momento de silêncio. Mais meditação, mensagem para o universo.

Num piscar de olhos, em virtude das tarefas que se acumulavam, estavam prontos para dormir. Exaustos.

***

Em conformidade com as normas, bons cumpridores que são, primeiro, Juliana usou o banheiro no horário reservado às mulheres; depois Carlos. Banho frio, de água da corrente que nascia ali perto, pura e imaculada.

Na saída do banheiro, um sujeito baixinho o chamou de canto. Estava escuro, pouco podia ver, mas percebeu que se tratava do porteiro-caseiro do lugar, que sempre observava os grupos atentamente onde quer que fossem. Sussurrando, sem que deixasse que Carlos respondesse em palavras ou gestos.

― Posso melhorar isso aqui. Encontre a antessala do auditório, indo pela parede da mata lateral, às 21:15h em ponto.

Carlos não entendeu o que poderia ser melhorado. Apesar de novato na função das conexões espirituais – tudo por Juliana, a quem amava profundamente – via-se crescendo gosto pelo universo paralelo para dentro do qual seu amor o havia sugado. E não deu muita bola ao diminuto homem.

***

No dia seguinte, Carlos achou estranho o clima mais descontraído de algumas pessoas. Um deles comentou do Carnaval de Salvador, rompendo o voto de silêncio e perturbando a sua mente de como, afinal poderia saber o que no além-muros do retiro ocorria, dado o isolamento com o qual tinham concordado?; outro estava visivelmente com sono, como se tivesse ido dormir tarde demais; ainda um outro casal trocava carícias e chamegos apaixonados, contrariando o clima de celibato que emanava do local.

Estava almoçando, quando uma criança veio lhe entregar um bilhete durante o almoço, no único instante em que sua namorada havia levantado para repor sua salada de legumes colhidos ainda naquela mesma manhã.

“21:15h, você sabe onde.”

Fechou o papel, no que a criança o puxou para si e saiu caminhando como se nada tivesse acontecido.

Era sábado de Carnaval. Apesar de seguir com retidão todo o cronograma do retiro, não conseguia esquecer o mistério que o intrigava. O que, afinal, significava aquela criança, o baixote, vinte e uma e quinze, aquela mudança de comportamento de tantos?

A curiosidade, insistente, o venceu.

No que sua namorada pegou no sono, seguiu para a antessala no horário indicado. Quando passava pela porta já aberta, viu pequenas luzes no chão da iluminando apenas o suficiente para que pudesse orientar-se sobre que direção seguir. Deu-se às portas de uma espécie de porão com escadas de paredes acolchoadas, e depois de alguns degraus, ouvia um barulho vindo de uma portinhola ao fundo.

Abriu-a receoso, sendo instantaneamente cegado pela forte luz que varreu a escuridão.

***

Recuperado, tendo esfregado os olhos num esforço para que recobrasse a visão, atravessou o espaço. Dando-se conta do que observava, esfregou os olhos uma vez mais, como se não pudesse acreditar no que estava em sua frente.

Televisões ligadas mostrando os jogos da rodada; uma outra com os desfiles das escolas de samba de São Paulo; mais ao fundo, computadores conectados com o mundo; no bar, onde também funcionava o caixa, estava o baixinho, agora fora das sombras: seu Gervásio, o porteiro.

― Seja bem-vindo, Carlos! Uma bebida? A primeira é por conta da casa.

Absorto, pediu uma caipirinha tradicional, limão, açúcar e cachaça. Pôs-se fora do estado de choque para balbuciar:

― O quê que é isso aqui?

― Ora, meu amigo, você acha que o povo aguenta essa pasmaceira durante 5 dias? É Carnaval, meu amigo! Para fora, você pode ser o pudico que exigirem seus amigos, familiares, e sei lá mais a quem vocês contaram onde estariam, e até mesmo a Monica e Papa, que aliás, a essa hora, devem estar entregues aos prazeres da pele, se é que você me entende… Mas aqui dentro é onde a verdade aparece. O que acontece aqui no porão, fica aqui no porão.

Carlos bicou a caipirinha sem crer. Varreu o ambiente com mais cuidado.

― E aquela portinha ali no fundo?

― Quarto para visita íntima.

― Eita! É mesmo, é?

― É! Mas tudo tem um preço!

E não era barato, não.

― Cada noite aqui custa 150 reais de entrada. Quartinho do namoro? 200 reais por uma hora, mas é bom reservar antes que lota. Aqui está o cardápio de comidas e bebidas. Ah! E se quiser, amanhã vai começar um torneio de pôquer, 2500 reais de entrada.

― E o Mengão hoje?

― 4 a 1. Outro patamar!

Do quartinho dos fundos sai o casal que percebeu estar trocando carícias durante o dia. Passaram por ele, deram uma piscadinha. Voltou-se a Gervásio.

― Internet?

― 50 reais, meia hora.

― É boa?

― Ô! De fibra.

Pegou sua caipirinha, sentou-se numa das baias com o computador, e foi direto para as redes sociais. Perdeu noção da hora, foi-se embora.

***

O dia seguinte, Domingo de carnaval, passou demorado. Tinha o vasquinho jogando, desfile no Rio, e, céus, aquela caipirinha estava boa demais… Decidiu retornar ao porão. Assim que sua mulher dormiu, ele pulou para fora da cama e seguiu rumo.

Mas sua consciência pesava. A fim de resolver-se, decidiu caminhar pelo bosque anexo à propriedade para clarear a cabeça. A cada passo, forçava a mente a adular os benefícios do retiro e, pior, esvaía-se em penitências ao projetar o que Juliana ia pensar de tudo aquilo.

Ainda assim, não conseguia parar de pensar em quanto tinha sido o jogo da rodada, no que rolou no campeonato inglês, em como iam a Mangueira e a Portela. Percebeu que só a dúvida já era suficiente para perceber que não haveria outra forma: tinha que ceder e aprumar-se ao porão.

Desceu as escadas resoluto.

Quando entrou, deu de cara com o lugar ainda mais lotado, com quase todo mundo que ali estava para o retiro. Já lhe trouxeram uma caipirinha de limão, “vasquinho tomou 3 do Ameriquinha hoje!” acompanhado de uma gargalhada, Portela entraria dali a 45 minutos.

― Lembra do pôquer? Dois e meio pra sorrir. Só falta um. Vai jogar?

Nessa altura do campeonato, perdido por um, perdido por mil.

― Bora! – Repondeu sem esconder a felicidade. – Uísque?

― Claro! Do bom.

― Chaturo?

― E a gente lá é amador? Sem charuto não existe pôquer! Mas…

― Sim, eu sei, tudo tem um preço.

― Tá sabendo, hein? Me acompanhe.

Logo ali do lado, numa sala fechada, enfumaçada e fedendo a excelentes cubanos contrabandeados, ele entrou para encontrar outros 5 jogadores já sentados e comentando amenidades com alegria.

― Chegou quem faltava!

Gervásio tratou de fazer as introduções, no que todos se viraram para saudar aquele que completaria a mesa. E ouviu a voz que tanto lhe agradava, destsa vez em tom debochado.

― Puta merda, até que enfim, hein, Carlos?

Era, para sua total surpresa e espanto, Juliana, de uísque numa mão e charuto na outra.

― Bora! Senta aqui que já estamos atrasados. Quero ganhar o dinheiro desses trouxas e terminar a mão antes de a Mangueira entrar, na avenida e no quartinho dos fundos!

Falou ela, piscando para ele, no que todos caíram numa sonora gargalhada.

Domingo virou segunda, que virou terça. De dia, eram comedidos e fiéis cummpridores da ordem. De noite, bebiam, brindavam, brincavam, gastavam, jogavam.

A cada nova volta de relógio, estava certo que nunca mais amaria alguém tanto quanto a Juliana.

***

A conta, como era de se esperar, ficou salgada na manhã de cinzas.

― É isso mesmo, Gervásio? Tem nem um descontinho?

― Ô, seu Carlos, sabe como é… Esse é preço do retiro para um espírito leve e sem culpa!

Deu de ombros. “Valeu cada centavo”, disse ele, abraçando Juliana e estendendo o cartão de crédito para a cobrança garantidora de aparências.

***

De volta à cidade, os amigos perguntavam, curiosos:

― E aí, como foi o famoso retiro?

Encheram o peito, ela orgulhosa, ele ainda mais:

― Ah, foi lindo! É ótimo estar em contato com a natureza e com o lado espiritual, sabe? A gente percebe o que realmente importa na vida.

Abraçaram-se e beijaram-se em cumplicidade.

Todos olhavam admirados a abnegação do casal em pleno Carnaval, externando uma certa ponta de inveja de um sacrifício que jamais seriam capazes de fazer.

***

 
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