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Seu Ponga

Seu Ponga

Ganhou esse apelido pela habilidade que tinha para subir no bonde. Franzino, pongava sem perder a compostura, pose de malandro retido, sem bagunçar nem a cabeleira parafinada nem o fino bigode nem o terno de linho.

Hoje, já beirando os 90, nem bonde vê mais passar.

Ele conta, com olhos saudosos, de seu tempo. Do carnaval de rua, das marchinhas. E principalmente das charangas, que formavam a alegria da folia de antanho.

Diz-se que Seu Ponga esteve na formação original da primeira charanga do Rio de Janeiro, a Bonde da Tereza, que subia pela linha o morro de Santa Tereza a soprar sucessos. Informação esta que não pode ser verificada por qualquer registro histórico a não ser a memoria do senhor que ainda ostenta um fino bigode, embora a parafina há muito tenha sido aposentada e o terno de linho tenha sido abandonado por roupas de algodão mais confortáveis. Nunca houve quem ousasse contestá-lo, e a verdade se impôs, espalhada pelo boca a boca da intimidade da vizinhança.

Tocava saxofone, que afirma ter aprendido a soprar com Pixinguinha.

― Quer professor melhor que esse? Complicado era ter aula com ele sóbrio.

Na levada da mitologia que se constrói no superlativo das narrativas, quem teve o privilégio de ouvi-lo diz que superou o tutor.

Vive num apartamento em cima de um café-boteco na Lapa carioca. Quando adentra o humilde recinto comercial, cotidiana e religiosamente, a franzina figura é reconhecida imediatamente, para grande festa de todos que ali estão, que fazem fila para cumprimentá-lo:

― Dá-lhe, seu Ponga! O de sempre?

E servem uma dose de cachaça com mel, virada duma vez, sem nem pestanejar ou precisar pagar.

Na proximidade da grande festa da inversão da realidade, o tom das conversas vai assumindo ares de expectativa.

― E o Carnaval esse ano, seu Ponga? A charanga sai ou não sai?

Apesar da ausência como tocador, Seu Ponga é visto como referência para a ressurreição dos antigos Carnavais, onde outrora a vida era mais simples e muito mais dura.

― Difícil, meu filho. Tenho mais saúde pra isso, não.

Faz quase 15 anos que seu Ponga realmente não tem mais saúde para tocar. Principalmente no Carnaval. Foram muitas décadas subindo os morros de Santa Tereza com sua charanga. Os pés doem, os joelhos não suportam mais ladeira, e os pulmões estão debilitados pelo cigarro fumado desde os 11 anos de idade.

Mas neste ano, vejam só as coincidências desta vida, completa 90 anos de vida em pleno sábado de carnaval. Empolgado, tendo já vivido para acumular hora extra, decidiu que se apresentaria uma última vez, em seu aniversário, na sua Santa Tereza, na charanga que o aceitasse.

Pediu ajuda, monitorou aquelas que tocariam. Acertou conversa via essas tecnologias que nem conhecia, quanto mais dominava, mas na corrente de prestativos ajudantes, encontrou guarida. No dia ta, carro passou logo cedo para levá-los, ele e seu saxofone, que não via ar fora da case de veludo desde há muito.

Na noite, limpou, lustrou, benzeu. Mesmo depois da limpeza, viam-se no instrumento as manchas do tempo, uma ferrugem aqui e outra ali e mais uma acolá, o metal manchado e um descolorido, ranhuras que o tempo preservou como memória. Na manhã, conferiu, benzeu pra garantir e seguiu de carona.

Quem veio ter com ele foi Hamilton, líder da charanga que sairia antes das 9 e iria até o último cliente. Pôs-se o jovem de posto e de poste a acompanhar o senhor de joelhos gritando e passo vagaroso pelo trajeto. Seu Ponga segurou no braço do novo amigo, e foi caminhando pelas estreitas ruas de paralelepípedo do bairro.

Dali a um tempo, resolveu dar nova chance ao bocal.

Hamilton tomou a frente e pediu silêncio. Bradou que o mestre do verdadeiro carnaval carioca, o dos bairros, o dos travestidos, o das marchinhas, o da vida de então!, iria tocar de novo depois de 15 anos!

Quanta honra!

O povo gritava eufórico “Seu Ponga! Seu Ponga!”

Alguns, desavisados, perguntavam:

― Quem é esse Seu Ponga?

― Sei lá, mas deve ser importante.

Seu Ponga, então, subiu nos degraus de um casarão, fez-se visto. Incrível, mas nem um pio se ouvia. Sorriu em despedida, e levando o instrumento à boca, o único sopro que se ouviu foi o de adeus.

Pongou no bonde que cruzava ali perto, sem perder o molejo, nem a fineza do bigode, nem um pro lado do cabelo engomado, sem nem amassar um teco do terno de linho, e foi recebido com alegria pelos grandes do carnaval carioca de priscas eras, ali logo depois dos arcos da Lapa.

― Este carnaval… Não é mais o mesmo, hein, Ponga?

― Não. Mas continua lindo.


Crônica fez parte da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 28 a 31.


Carnaval, Papo de Galo, revista, Gabriel Galo,
Capa da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021.

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