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Suzana

Chegamos para passar dois dias numa pousada em Búzios. O feriado que recém acabara tinha sido de tempo fechado e uma chuva renitente no Rio de Janeiro, no que chegar à região dos Lagos com sol e um brando calor nos encheu de alegria. Eram dois dias para ficar de pé na areia, lendo um livro, tomando um sol sem preocupações. E assim fizemos, ora pois.

Na pousada, ainda nas primeiras horas do dia, fomos recebidos pela Suzana.

Baixinha, magra muito magra, rosto com pele marcada de sol, cabelo quase dread, folgada calça de pano com uma camiseta-uniforme da pousada, uma rasteirinha, e voz rouca, que com dificuldade se fazia ouvir, com sotaque carregado do Sul. Foi enquanto tomávamos café-da-manhã no mesmo dia da chegada que pude conversar um pouco mais com a também tatuada funcionária.

– Cheguei a Búzios tem dois meses. Antes estive em Pernambuco, fiquei 5 anos lá. Fui pra Porto de Galinhas e não quis mais sair de lá. Olinda, pra mim, é o melhor lugar do mundo. Foram anos maravilhosos. Mas comecei a querer continuar me mexendo. Sou de uma cidade próxima a Blumenau, Santa Catarina. Um amigo estava vindo pra cá, e vim junto com ele. Quando vi essa vista – ela aponta para a vista da pousada na praia da Ferradura – vi que queria ficar aqui mesmo. E tô aqui, sei lá até quando. Não faço muitos planos. Aqui em Búzios tem muita gente de fora, foi fácil me adaptar. Nessa pousada, então, 70% de quem se hospeda é argentino, uruguaio ou chileno. E tem vários funcionários aqui que são argentinos, o dono também é, e acaba conseguido muita gente de lá. A cidade é boa, sempre tem alguma coisa acontecendo. Hoje, por exemplo, tem um sarau com música ao vivo e microfone aberto num hostel – ela fala a praia, mas não lembra o nome do lugar – vocês deviam ir! É muito legal.

A ideia proposta me agrada. Mas havia algo ali que me incomodava. A fluência com que falava do lugar, do que poderia ter na cidade era inversamente proporcional à rapidez e aspereza com que falava das coisas que lhe cabiam mais íntimas.

– Você é mochileira, então? – Pergunto.

Ela abre um largo sorriso.

– Sou!

– Por quê?

O semblante dela se fecha, armado para o confronto. Minha pergunta tinha como objetivo único de conhecer a história de vida de Suzana, mas estou seguro de que muitas e tantas vezes ouviu esta mesma pergunta vindo com uma dose cavalar de julgamento e empáfia. Gato escaldado tem medo de água fria. E respondeu da única maneira que se habituou a responder, seca, um pouco debochada, e elevando um pouco a voz:

– E por que não?

Encarou-me por meio segundo, e desviou o olhar, cabisbaixa.

Havia, naquele momento, uma vulnerabilidade maior do que ela jamais gostaria de demonstrar. A rigidez da resposta mostrava que mesmo a sua vida livre, mambembe e desregrada ainda não fazia sentido para quem mais importava: ela mesma. Sentia sobre si o peso da culpa e da insegurança. Será que realmente este é o melhor caminho que poderia ter tomado? Estou bem e satisfeita com a minha decisão.

Não, ela não estava.

A certeza que certamente possuía em si de que os quadrados que seguem vidas quadradas de acordo com o que todo mundo diz que tem que ser são uns tolos. A contradição se fazia, inconscientemente, dentro de si, que certamente ainda convivia com a dúvida: serão tolos eles, ou eu? Extravasava da forma que sabia, na impulsividade de quem quer se mostrar livre, mas não consegue esconder os fantasmas do passado.

Não importa o caminho que você siga. O não lidar com este passado assombra para sempre, o tempo inteiro. Gera conflito. Insegurança. E uma dada atitude beligerante para os lados de quem se atrever chegar mais perto.

Mais tarde, veio, prestativa e sorridente, dizer o nome do hostel com a música. Havia se lembrado. Como que implorando para que se esquecesse aquela história de quem ela foi, para focar em quem ela se propunha a ser.

Nunca deixamos de ser quem nós fomos. O filósofo Ortega y Gasset já dizia que “eu sou eu e minhas circunstâncias”. É impossível dissociar tal de qual. As circunstâncias importam porque moldam quem você é.

Queria aprofundar mais. Conhecer mais de seu caminho até ali. Compreender o quanto daquilo era fuga, o quanto daquilo era prazer.

Só que depois deste café-da-manhã não mais a vimos. Dali para frente fomos sempre recepcionados por diversos daqueles funcionários argentinos que ela tinha mencionado. Talvez a escala assim já dissesse previamente, talvez ela quisesse manter seu segredo longe do baiano curioso que lhe importunava os pacovás.

Ficou, para mim, uma lição de entendimento empírico. De que podemos lutar fortemente e bravamente para nos desgarrar das amarras e grilhões do status quo e da vida que deve ser vivida. Podemos até nos sentir superiores por causa disso, um sentimento de poder, de “consegui, enquanto poucos conseguem”. Mas os verdadeiros fantasmas dos quais temos que nos livrar, que nos vêm à noite para puxar nossos pés enquanto nem conseguimos dormir, são aqueles que a gente peleja para esconder debaixo do tapete: nosso próprio passado.

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Esta crônica faz parte da série especial Todos têm uma história.

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