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Teca de mochilão pela América

Teca de mochilão pela América

Como minha mãe resolveu fazer um mochilão pela América do Sul aos 56 anos.

O CHAMADO

Chegou a Ushuaia, no extremo sul do mundo, lá onde a América do Sul faz curva, uma visitante vinda dalgum lugar e indo pr’outro. Em vida de viajante, só existe ponto de parada. Mochila nas costas, carregava consigo no peito e na alma a leveza dos aventureiros, no rosto um sorriso, e nas costas uma necessidade de recostar-se. Rodou os muitos passeios à disposição da cidade principal da Patagônia argentina: barcos, caiaques, escaladas, trens, esquis, trenós; lagoas, lagos, canais, montanhas, ilhas.

Com a expansividade típica de quem vive daqui a ali, amealhou amizades em cada porto. E provavelmente entre um café e outro no Valle de Lobos, um dos principais clubes de inverno de Ushuaia, distante quase 20km do centro da cidade, que ela conheceu Teresa Perez, a Teca, minha mãe. Conversaram como deu, minha mãe estabelecendo contato com o que pôde juntar de espanhol e muito riso.

O sorriso é a linguagem universal.

Acabaram ficando amigas. Quando dava, passeavam juntas, saíam. Em pouco tempo, a pergunta veio, pegando minha mãe de surpresa, pergunta que alteraria a partir dali sua vida de maneira definitiva, embora disso não se desse conta ainda: “vamos viajar comigo?” Na lata, minha mãe respondeu “Vamos!” e os planos começaram.

USHUAIA AOS 55 ANOS

Era junho de 2016, logo em seguida ao seu aniversário, quando minha mãe embarcou em Guarulhos rumo a Ushuaia. Aos 55 anos recém-completados, haveria de, finalmente, pisar em solo estrangeiro. Já sua ida para a Argentina foi recebida com incredulidade. Trabalharia com a ex-nora, num movimento de vida que fere o tradicional. A bem da verdade é que tudo que envolveu Ushuaia até então nesta família foge do tradicional.

O convite veio para que fosse trabalhar no Bodegón, o restaurante de Valle de Lobos, clube de inverno operado pela minha ex-mulher com o novo marido. Vendo-se com os filhos criados, presa a um trabalho que não indicava futuro, minha mãe se desvencilhou das amarras que a seguravam em São Paulo e aceitou recomeçar em outro país, em outro idioma. Tudo era outro, nada permanecia. Fez saldão, vendeu o pouco que lhe cabia, arrumou as malas e foi.

Dividiu cabana com mais seis pessoas, que chegaram a sete e baixaram a cinco, dois cachorros, que chegaram a quatro. Na dança dos números, um banheiro para todos. Dezesseis meses de frio, cansaço, entreveros, passeios a lugares que nunca imaginou que poderia ir, e uma certeza: a de que ali não era o seu lugar. No alento do dia-a-dia sem TV, sem internet e sem pausa para o café, dois de seus seis netos, que se agarram na avó com carinho, ternura e sapequice.

Os abraços e sorrisos carinhosos dos netos pela manhã não seriam suficientes; as belas paisagens às quais eventualmente visitava, tampouco. Fosse qual fosse, haveria a volta a uma rotina sacrificante, aprendizado condicionado de toda uma vida, de ordens exigindo cumprimento de cabeça baixa, num respeito hierárquico que independia de respeito humano.

Faltava, por fim, o elemento principal da busca de minha mãe quando aceitou enterrar-se na neve na cidade mais austral do planeta: ela mesma.

DEIXA A VIDA ME LEVAR

De passado e presente humildes, minha mãe seguiu à risca aquilo que lhe atribuíram como rota. Casou-se grávida aos vinte anos de idade, com marido ainda mais novo. Gerou três filhos antes dos 25 anos e aguentou por eles o cotidiano de um relacionamento opressor. Em vinte anos de casamento, dificilmente é possível dizer que foi feliz, mas teve os seus momentos.

O aspecto mambembe, causado pela pobreza e pela quantidade crescente de bocas para alimentar, fez com que a família pulasse de galho em galho. Moramos em mais casas do que gostaríamos de supor. Ainda assim, não importando como, garantiram escola particular aos filhos. Acreditavam na saída pela Educação, pelo que serei eternamente grato.

Trabalhava jornada tripla todos os dias, trabalho, filhos e casa, numa época em que o pai era provedor, tão somente, e tarefas domésticas eram coisa de mulher. Esquecia meu pai, propositalmente, o fato de que era ela, também, provedora. Mas coisa de mulher era coisa de mulher, e todos os dias ela trabalhava, cuidava dos filhos, cozinhava, limpava a casa. Vivia na beira da estafa.

Companheira, topava o que lhe fosse colocado por meu pai. Quando a vida pregou peça em empreendedores de segunda linha que eram, largaram tudo em Salvador para rumar para o Mato Grosso do Sul. Não é possível precisar qual vez era a que começavam de novo, mas esta trazia significado especial. Deixavam para trás cidade, amigos e filhos, que a eles se juntariam dali a nove meses.

Dois anos depois, outra retomada, desta feita com destino a São Paulo.

Os recomeços tantos, no entanto, nunca foram por ela. Ela deixava que a vida a levasse, conforme imaginava ser esperado. O que gerou alguns comportamentos que demandavam atenção. O principal deles era a necessidade de que alguém fizesse as coisas por ela. Privava-se de identidade e de gosto. Encolhia-se à passividade.

O primeiro grito de libertação do casulo foi em 2002. Seu copo transbordou, e o casamento capenga virou separação e desquite. Mas a vida… Ah, a vida! Na sequência, a filha mais nova, minha irmã, viu-se grávida adolescente. No ano seguinte nascia a primeira neta, de quem minha mãe cuidou como se mãe fosse até romper os grilhões rumo a Ushuaia.

Nunca será capaz de dizer-se arrependida do caminho que trilhou. Até porque, alternativa não há a não ser a de aceitar, porque o passado não se altera. A nós resta apenas o futuro, em seu ineditismo, em sua surpresa.

OS PLANOS DO MOCHILÃO

Com a amiga recém-abraçada, um mapa na mão e um monte de ideias na cabeça, começou a traçar linha dos lugares que gostaria de conhecer. Logo menos, muitos queriam se envolver, propor locais imperdíveis. O diamante bruto era lapidado. Muitas dicas boas surgiram. Questões funcionais como qual o melhor tênis, a melhor mochila, a melhor lanterna… Um “não leve muito peso” eliminou casacos e itens extras, colchão inflável e tais. Pululavam indicações de melhores rotas, detalhes de albergues, hotéis, custos, comidas, avisos de cuidado. Quem em contato entrava se mobilizava para facilitar a empreitada.

Aos poucos, pelo curto da grana que embolsava, comprava os itens para encher o bucho de sua mochila.

No meio do caminho, no entanto, a amiga, encantada que estava com Ushuaia, desistiu. Por ali ficaria. Minha mãe se viu sozinha e com uma decisão importante a tomar: vou em frente ou não vou?

A dúvida, no entanto e felizmente, não cresceu. Já contagiada pelo espírito da descoberta, não alterou seu rumo. Manteve-se firme na ideia e no propósito. Talvez pudesse, até, ter experimentado certo alívio de poder alçar o voo solo. A inquietude de explorar territórios desconhecidos teria um certo sentido na essência: o principal território que pouco conhecia era ela mesma. Eliminava-se, assim, no navegar solitário, a possibilidade de seguir conforme os desejos de outrem, por mais amiga que fosse.

Aqui reside a beleza maior do que se propõe a viver: faz por ela, para ela, com ela. Em tantos e muitos anos, elevou-se a prioridade. Abandonou, já na concepção da trilha, o costume de viver conforme lhe dizem. Está desentortando a boca do cachimbo.

Os dias iam passando, a data ia chegando, muitos duvidando. Será que vai mesmo? A incredulidade dava espaço à excitação. Festa de despedida aqui, outra ali.

Ela vai!

RUMO AO DESCONHECIDO

Tudo pronto! Ushuaia é o ponto de partida do mochilão de Teca pela América.
Tudo pronto! Ushuaia é o ponto de partida do mochilão de Teca pela América.

Hoje, dia 02 de outubro de 2017, por volta das 09 horas da manhã, ela desceu do carro da minha ex-mulher do lado do portal da cidade. Mochila nas costas, e um sorriso enorme no rosto. Nunca a vi tão feliz, tão livre, tão leve.

No radar, Chile, Argentina, Peru, Colômbia, Bolívia.

No tempo, por volta de três meses, desvio-padrão do tamanho que ela quiser.

Vai colocar o polegar em riste, carona para onde estiverem indo e também estiver na lista dos lugares que quer visitar.

Dinheiro não há muito, não, senhor. O mínimo para aturar perrengues urgentes. Na cabeça, trabalhar um dia para bancar a comida, as diárias de albergue ou hotel, e passear outro. Vender o almoço para pagar a janta.

Vai escalar glaciais, atravessar desertos, subir cordilheiras, nadar em lagos e mares, embasbacar-se em salares, tocar o céu em Machu Picchu, pisar à terra em vinhedos e campos, ver o sol se pôr no Pacífico.

Vai conviver com gentes e culturas, índios, portenhos, andinos, espanhóis, companheiros de carona e de aventuras, que vão abrir as portas dos carros, das casas e de seus trabalhos para acolhê-la.

Vai experimentar comidas e bebidas típicas, peixes, carnes, frutas, cortes, plantas, chás, sucos, extratos. Vai pisar o vinho e acompanhar com interesse o dilema: afinal, pisco é chileno ou peruano?

Vai sentir uma montanha-russa de emoções, sorrir, sofrer, chorar, cansar-se, pensar em desistir, euforicamente querer continuar, namorar, flertar, tudo talvez ao mesmo tempo.

Vai, fundamental, viver!

Vai somar tudo e explodir o invólucro para que renasça uma nova pessoa. Aquela que ela não sabe quem é, mas quando tocar-se e sentir-se nova poderá dizer “que falta que você me fez. Muito prazer.”

Nunca é tarde para descobrir-se.

Transbordo de orgulho. Aos 56 anos, chutar o balde e recomeçar em si mesmo exige, sobretudo, coragem.

Que seja absoluta e inesperadamente lindo.

Boa viagem, Mainha!

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Em pouco tempo, já subiu no carro rumo a Punta Arenas. Ou Rio Grande. Ao certo vai saber quando chegar lá, onde quer que lá seja.

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#todostemumahistoria
#tecapelaamerica

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