De vez em quando ele aparece. Já são inúmeras as noites em que acordo assustado, sonhando com meu pai. Raramente como se vivo ainda estivesse, mas sim como se ensaiasse em seus últimos passos. O que teria escrito, o que teria falado, o que teria feito. Sua voz clara, sua escrita firme, seus passos. Truque da mente, como se real fosse, incapaz de discernir fantasia.
De vez em quando a saudade não cabe em palavras. Se fosse escrever o de que exatamente, dias correriam, minha paciência sumiria, alguns raros chegariam até o final. Para se perguntarem por que de tanto aquilo, quando o simples resolveria. De que? De tudo.
De vez em quando dói. Não sempre, apenas quando lembro. Segundo dizem, a dor nunca passa. Com o tempo, transforma-se nosso pesar em aceitar.
Tempo.
A vida continua, o fazer-se dia novo suplanta a cabeça vazia. Que quando se cala, é assumido o leme pelo que poderia ter sido. Pelo que ainda luta para estar presente.
Segue-se o rumo.
Melhor assimilar a canção de que tanto meu pai gostava. Ponho-me a pensar que seguir a vida seja, simplesmente, compreender a marcha e ir tocando em frente.
Sabendo que para frente é que se anda, mas sem nunca esquecer o que ficou para trás, aquilo que nos formou gente.
O equilíbrio tênue entre o quanto se olha em cada direção.
Tempo.
Não haverá linha a ser cruzada, cartaz de informando o atravessar de fase. Apenas será. No lugar onde a dor se torna sorriso. Onde a falta se torna lembrança.
Onde a mensagem é repassada à próxima geração como aprendizado.
Tempo.
Sem saber o tanto, mas sabendo respeitar-lhe. Aprende-se o tanto, suponho.
Não me diga quanto, porque não sou chegado a livro-texto. Apenas passe, arrume o prumo. Comprometo-me a lhe deixar entrar, a fazer-lhe sala.
A sentir-lhe o bafo inexorável do inevitável.
E torcer para que eu tenha capacidade de identificar o ponto em que sua obra se completa e poder estar em paz com seu construir.
***
Impossível cantar a música abaixo sem que me embargue a voz. Um porto seguro no que quando arte a tornar-se ombro, a materializar-se em agora. Os dois primeiros versos são, para mim, o maior elogio que algo pode ter. Do álbum “Cinema Transcendental”, de 1979.
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Oração ao tempo
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo Tempo Tempo Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo Tempo Tempo Tempo
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo Tempo Tempo Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo Tempo Tempo Tempo
O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Apenas contigo e migo
Tempo Tempo Tempo Tempo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo Tempo Tempo Tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo Tempo Tempo Tempo
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