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Trilogia

Trilogia

Se é verdade que a vida imita a arte, Cristian decidiu que a dele seria a sétima. Desde pequeno se sentiu absolutamente atraído ao mundo da telona. Quando não tinha filme novo, via repetido. Se esgotava o circuito blockbuster, ia pro alternativo. Assim, teve contato com a arte de tudo quanto é canto do mundo. Discursar e debater as nuances das películas era um de seus principais passatempos.

Aos 18 anos conheceu a Priscila.

Foi uma paixão violenta, dessas de filme. Foi a analogia, aliás, que fisgou Cristian. Não se separavam. Faziam faculdade de Cinema juntos. Quando começaram a trabalhar numa mesma produtora, estavam no céu.

Aos 21, entrando no último ano de faculdade, Priscila começou a ter dúvidas se queria seguir a carreira. Conversou com o Cristian. O baque foi tremendo para ele. Via-se, claramente, seu amor se dissipando. No ano seguinte, após formar-se, arrumou as malas e seguiu para a Austrália, deixando para a Priscila apenas um bilhete comunicando o término.

A decisão de sair da Austrália e voltar para o Brasil aconteceu assim sem muito motivo. Não se sentia mais feliz nas terras dos cangurus. Fez alguns documentários, ganhou alguns pequenos prêmios locais. Num ano esteve na lista de considerados para o Oscar, mas não foi adiante. Queria mais, mas em vez de se instalar na Califórnia, seguiu para o Rio de Janeiro.

Rapidamente criou sua produtora. Esforçou-se para conhecer a Lei Rouanet de cabo a rabo, o que o premiou com seu primeiro longa brasileiro. Foi num café em frente ao set de filmagem que não pôde acreditar no que via.

Fim de tarde, sol se pondo, numa mesa redonda de duas cadeiras, lendo um livro, de óculos e coque, Priscila tomava um cappuccino distraída. A luz. O momento. 12 anos sem sequer uma palavra.

Olhou-a fixamente. Precisava da confirmação do ser reconhecido antes de dirigir-lhe a palavra.

Fui num último gole do cappuccino, preparando-se para chamar o garçom, talvez a pedir outro, que seus olhares se cruzaram. Sua fisionomia de surpresa e medo constrangeu o Cristian. Ainda assim não se desligaram.

Ele levantou e foi até ela.

– O que você está fazendo aqui? Começou ela. Nem ao menos um abraço.

– Voltei para o Brasil. De vez.

Conversaram. O que primeiramente era um papo rápido, fluiu. Ela, agora, era executiva de uma grande empresa, largou Cinema e foi fazer engenharia. Casou-se. Tinha uma filha pequena, a Giulia, olha a foto, que linda! Morava num confortável apartamento na Lagoa.

Mas havia muita história ali.

O que eram encontros esporádicos, virou um novo romance. Encontros escondidos, reuniões de meio de tarde com clientes que terminavam na casa dele nas Laranjeiras.

– Pri… Eu te amo.

Ela olhou, enternecida.

– Você sabe que eu também te amo. Sempre te amei.

Começaram a discutir como fariam para voltar a viver juntos. Era complicado. O Marcos. A Giulia. A vida confortável.

Alinharam tudo.

Um dia antes de oficializar a união, Cristian recebeu um convite para dirigir um filme em Hollywood. Uma produtora independente de lá. Entrou em conflito consigo, não sabia o que fazer. E neste não saber, soube o que era necessário.

No dia seguinte, Priscila acordou com um Whatsapp de Cristian. Chorou copiosamente, para desespero de Marcos, sem saber como ajudar.

Foi uma carreira de sucesso a dele nos EUA. Premiada por uma Palma de Ouro em Cannes, quando tinha 49 anos, e imaginava estar no auge de sua maturidade artística. Há 14 anos em Los Angeles, estava muito bem estabelecido na cidade, adaptado ao American way of life. Enriqueceu, tinha prestígio.

Algumas revistas o colocavam em relacionamentos com atrizes novas, algumas modelos, teve até, supostamente, um caso com uma cantora de rock. De fato, vivia sozinho.

Numa viagem a Londres, procurava por locações ideais para seu novo filme. Já há 3 meses na cidade, tinha grande parte de seu roteiro encaixado. Sentia-se satisfeito, porém cansado.

Desceu à França para uma última locação.

No Trocadero, sentado tomando café da manhã, assistiu admirado à chegada de uma senhora e uma menina que parecia ser sua filha. A mais velha, vestida de maneira extremamente elegante. Conversavam alegremente. Achou bela a cena. A mais nova se despediu em seguida a um pão com manteiga e um café, apressada seguiu para ser engolida pelo metrô. A mãe, de costas para ele, continuou apreciando seu croissant, seu cappuccino.

Não poderia ser.

Pediu a conta, queria tirar a prova.

Parou na frente da senhora, que demorou uns segundos para perceber sua presença. Quando cruzaram o olhar, um vento gelado subiu pela espinha.

– Oi, Pri…
– Você…

Apressou-se a buscar seu telefone, como a simular pressa. Era um sábado, apressados apenas os que desciam ao tubo, não os que viam o dia passar.

Conversaram. O ressentimento era evidente em Priscila.

Contaram de tudo, desmontando a guarda. Ela, da separação do Marcos, assim que ele sumiu pela segunda vez. “Pelo menos serviu para que eu percebesse que não o amava mais”. A filha, recém-matriculada na faculdade, para onde se foi pouco antes. Da carreira como CEO de uma empresa de cosméticos. Ainda solteira.

Ele contou dos filmes, de Cannes, de Los Angeles. No novo a ser filmado em Londres e Paris.

– Estarei muito perto… Te ligo.

Ligou. Havia muita história ali.

A cada ida a Paris, ficava num hotel de luxo na Champs-Élysées, onde sempre Priscila ia visitá-lo.

– Eu te amo, Pri.

Ela, desta vez, ficou calada. Naquela noite, não conseguiu dormir.

Ao acordar, Cristian se viu sozinho. Ao seu lado, um vazio desarrumado de lençóis. Na mesinha de cabeceira, um bilhete à mão, onde se lia:

“Sei onde isto vai dar. Não posso me permitir a mesma dor por uma terceira vez. Finalmente, closure.”

A partir dali, perambulou sem muito entusiasmo pelos seus projetos. Seu filme foi não mais do que médio.

Percebeu-se sem objetivo.

E num passeio pela mais famosa avenida parisiense, parou num café. Escreveu um pequeno bilhete à mão, tomou um cappuccino, voltou para o mesmo hotel.

No dia seguinte, Priscila recebeu o bilhete em sua mesa.

“Nosso hotel. Agora. Urgente.”

Apavorada, cancelou compromissos, foi-se apressada ao hotel, onde foi permitida subir sem contestação. Com a mesma chave que sempre guardou na carteira, abriu a porta do quarto, para encontrá-lo deitado, já sem vida, frasco de comprimidos aberto e oco sobre a cama.

Ao lado do corpo, um manuscrito com 3 volumes. A história de sua vida.

Mesmo tendo tentado evitá-la, sentiu a dor lancinante uma terceira vez. Ainda mais forte pela certeza de não mais haver meet cutes ou fuga ao passado. Permitia-se, apenas, o futuro.

Encontrou conforto no fato de que, com Cristian, a última cena sempre seria a dele.

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