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A vergonha que eu sinto

A vergonha que eu sinto

Trellez, Vitória, Ba-Vi, racismo no futebol, treino, bola, gramado, MAURÍCIA DA MATTA

Não é possível dizer que estamos livres, imunes ao racismo no futebol. Acontece com todo mundo. É maior do que apenas o campo de jogo, é estrutural.

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Comecei a torcer pelo Vitória muito novo. Mais novo do que minha memória é capaz de lembrar, porque a partir de onde a luz das lembranças se faz acesa, Vitória eu já era. Acompanhei o rubro-negro baiano por altos e por baixos, sem esmorecer. Eu sou Vitória com emoção e com coração. Para cada lindo capítulo dos últimos 30 anos do Leão da Barra, coincidindo minha chegada ao universo vermelho e preto, há também um sem números de ocasiões de não muito orgulho.

Nunca, porém, senti vergonha de ser Vitória.

Quando no começo da década de 90 a gente ia para o Barradão, era necessário cortar caminho pelo aterro, morro acima. O cheiro era forte. Mais 20 metros para dentro se viam as torres de combustão de gases operando. Rivais ocupavam as arquibancadas com máscaras sobre o rosto, numa provocação tosca e engraçada. Nunca senti vergonha das raízes do santuário rubro-negro.

Em 2004 vi o clube despencar de uma semifinal de Copa do Brasil para o rebaixamento, arrastados que foram os rivais baianos. Cenário repetido em 2005, quando atingimos o fundo do poço do futebol em 2006, perdendo final de campeonato baiano para Colo-Colo e disputando a Série C. Não senti vergonha e minha crença no clube de Canabrava se fortaleceu.

Reerguemo-nos.

No mesmo ano subimos à B deixando o nosso maior rival apodrecendo no calabouço do ludopédio. No ano seguinte, fizemos história com o Barradão em Chamas naquele Vitória 4 x 1 Remo que sacramentou a volta à primeira divisão. Ah, como valia a pena ser Vitória!

No ano de 2010, mais uma vez, a chacota. Perdemos a final da Copa do Brasil para o Santos de Neymar e Ganso, para sermos rebaixados no fim do ano ao não ganharmos do Atlético-GO em casa na última rodada. Trocamos posição com o rival, que subiu para A. Completamos a cartela de vice-campeonatos nacionais sem ter conquistado um título (A em 93, B em 92, C em 2006 e Copa do Brasil em 2010). Nem assim tive vergonha, a gente leva na comédia.

Quando montamos aquele time mágico de 2013, eu já tinha tudo arquitetado para o Vitória ser vice-campeão do mundo sem conquistar um título sequer. Bastava o Atlético-PR ganhar a Copa do Brasil em cima do Flamengo, que o quinto colocado no Brasileiro, o Vitória!, disputaria a Libertadores 2014. Chegaríamos à final, mas perderíamos para um time mexicano. Disputaríamos o Mundial por conta da filiação à Conmebol, quando perderíamos para o Real Madri. A glória dos segundos colocados!

Caímos de novo no ano seguinte. Ainda assim, não tive vergonha. Nem com a sucessão de mesquinhas disputas internas por poder, alçando figuras obscuras ao leme da marca mais valiosa do futebol nordestino.

O maior motivo de vergonha do futebol é não saber perder.

Sempre fiquei roxo de vergonha ao ver equipes da América do Sul serem derrotadas na bola e buscar ganhar no braço. Atitude patética de quem se vê desmoralizado e crê que tal vilipêndio seja redentor da moral. Ledo engano. Eu pensava “ainda bem que não é o Vitória.”

Ouço os gritos de “bicha” quando um goleiro vai bater um tiro de meta, penso quão ridículo é, e raciocino que “ainda bem que não é o Vitória.”

Acompanhei os casos emblemáticos de Aranha e de Grafite, e percebi o quanto doeria ver o mesmo acontecendo dentro de uma instituição tão para mim sacra quanto a do Vitória.

Senti vergonha atroz por todos estes casos, mas estava livre, no Vitória isso não tinha vez.

Até que um certo colombiano, no apagar das luzes de um Ba-Vi, resolve que seria o momento adequado de recuperar sua honra e xingar Renê Junior com palavras profundamente racistas.

Nesta segunda-feira de pós-jogo, era dia de aguentar a comédia e a resenha, com torcedores do rival apertando a nossa mente rubro-negra sem dó. Era dia de xingar Neilton e sua displicência, Wallace e mais uma falha, Mancini e as substituições terríveis. Era dia de exaltar uma das maiores rivalidades do futebol brasileiro dentro do espírito zombeteiro e pirracento do baiano.

Mas não.

Trellez estragou meu baba. Maculou a santidade de um Ba-Vi. Remexeu nas profundezas do inaceitável. Desonrou o manto sagrado de cores vermelha e preta, vestido com paixão e ardor por grande parte deste país. Externou que para ser racista não precisa necessariamente ser branco. Desdenhou do que significa o futebol, a arte, o esporte.

Já não posso mais dizer que estamos livres, imunes do racismo no futebol, que não acontece com o Vitória. Acontece com todo mundo. É maior do que apenas o campo de jogo, é estrutural.

E pela primeira vez na vida me fez sentir vergonha de ser Vitória.

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