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Vitória e esperança

Vitória e esperança

A pequena Vitória, no auge da energia e vitalidade de seus 4 anos, subia e descia as arquibancadas no pequeno espaço destinado a visitantes no Estádio do Morumbi sem parar. A mãe gritava, chamava, pedia, mas ela queria festa.

Aos poucos, outros ali se instalaram. Apesar dos pesares, estes tantos se dispuseram a atravessar a conturbada e engarrafada metrópole paulistana numa quinta-feira dispostos a gastar parcos e suados caraminguás para poder gritar “Negô” a plenos pulmões.

Chegavam um a um, sorriso no rosto, carregando consigo a resiliência de quem coloca na fé e na esperança o desejo de que aquela noite seria diferente. Cumprimentam-se, uma comunidade que se encontra a cada jogo, mesmo com cartas marcadas.

“Diga aí, véi! É hoje, viu?”

O que é torcer, senão um ato de absoluta entrega? Um ato de fé? Um ato de mais pura esperança?

Esperança que, segundo o dicionário, é “crença, devoção ou confiança em alguém ou alguma coisa, especialmente sem prova lógica.”

E quem há de dizer haver lógica numa fé colocada à prova a todo instante, sem descanso? Quem há de julgar os que se resignam e abandonam o barco?

O impacto se vê nas arquibancadas cada vez mais vazias, seja no Barradão, seja na Fonte. Lutar é cansativo. Um amigo diz que a única luta que vale a pena ser lutada é aquela que não pode ser vencida. Aos mártires, o reino dos céus. Nem todos têm vocação para mártir, no entanto.

Para quem acompanha a saga rubro-negra das arquibancadas, cada partida é uma montanha-russa de emoções.

No início, é sempre expectativa. Para ser amassada pela realidade, aos poucos. Ora, se as coisas não vão assim tão bem, que pelo menos se proteja a honra! Lutem, como pedimos de cá, para a rouquidão se instalar logo em seguida.

“Ganha uma, Kieza! Vai pra cima, David. Aí não é lugar Willian Farias!” Não era mesmo lugar e o desassossego tomou conta.

Eis que, tarde no segundo tempo, Todinho, pronúncia que nem o achocolatado famoso, vem a campo para delírio de quem ali estava. Afinal, se o mundo do real não anda bem das pernas, apelemos para o escárnio. E quem melhor para entender de escárnio que o baiano?

– Colocaram o Todinho para ver se ele leva energia que contagia – diz um, citando graciosamente o slogan de outra marca, aproveitando para questionar a perene apatia dos vestidos de vermelho e preto.

– Mas esse aí não é slogan de guaraná?

– Oxe, então contrata logo também o Guaraná, o Nescau e o balaio todo.

O que estes torcedores, os ratos de arquibancada, almejam é simples: ver o manto honrado. Ver que o vermelho do uniforme pulsa, repuxa, transpira. Querem desligar-se do mundo externo, onde o cotidiano nos puxa para baixo como gravidade, e se refestelar na fantasia de ver-se Vitória. Quer vibrar com um Vitória vencedor, campeão. Uma fagulha para reacender a chama daqueles que querem o mínimo sinal de que é possível manter a fé.

O torcedor quer ao menos um resquício de retribuição para quem, pela paixão, é capaz de colocar o nome do time de coração no próprio filho.

O triunfo de ontem contra uma forte e favorita equipe serve, acima de tudo, para isso. Para reconstruir o despedaçado moral de quem apanha, mas ama, acima de tudo.

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Artigo publicado em 12 de junho de 2017 no Correio da Bahia. Link aqui.

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