“Quarta-feira, 23 de abril de 2003. Dia de Palmeiras 2×7 Vitória. Aquela noite, de conexão máxima com a Bahia, com o Vitória e com meu pai, não pode jamais ser esquecida.”
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BORA. TÔ TE ESPERANDO.
A quarta-feira, dia 23 de abril de 2003 começou como outro dia qualquer. Saí de Santana de Parnaíba, cidade da região metropolitana de São Paulo, quando claridade ainda não havia, sob o escuro da madrugada para meu estágio porcamente remunerado num banco da região da Berrini, um dos centros financeiros da capital. Trabalhei o tanto que costumava trabalhar. Quando o expediente acabou, caminhei ao trem que me levaria até a USP e dali seria esperar o raríssimo circular que me conduziria até a porta da minha faculdade. Jogado no chão do ponto de ônibus dentro do campus da universidade, deitado de capa para cima, tinha um jornal esportivo que mudaria, em definitivo, os rumos da minha relação com o Vitória por estas bandas. Ali, quando nem bem eram 19 horas, o roto diário descartado abria a mente: “hoje tem Palmeiras e Vitória no Parque Antártica.”
Num estalo, da minha carteira saquei sem titubear meu cartão de telefone (celular com crédito era coisa de gente muito mais rica que minha vida de estagiário poderia bancar) e fui atrás de um orelhão. Eis que do lado do ponto tinha um. Empolgado acima do que seria justificável, disquei o telefone de casa, esperando que meu pai atendesse. Ele atendeu.
– Pai?
– Fala.
– A gente vai no jogo do Vitória hoje. Me pega aqui na USP.
– Que jogo?
– Vitória e Palmeiras. Copa do Brasil.
– Tá maluco?
– Bora.
– Tá tarde, porra. E ainda tem uma baita viagem daqui até aí e depois pro estádio…
– Bora. Tô te esperando.
– Porra…
O segundo “porra” depois de tantos “bora” foi a senha que se traduzia em “segura aí, tô indo.”
Nossa relação vinha estremecida há uns anos. Fruto de decisões terríveis dele e do corte definitivo do cordão umbilical do jovem recém-saído da adolescência que eu era. Enfrentava, aos 20 anos, o medo de ter que levar nos ombros a família que desmoronava. Ao mesmo tempo, estava já há mais de seis anos longe da Bahia. As raízes escorriam como água pelas mãos, processo facilitado pelo ímpeto da juventude que se fecha para o passado e tenta construir seu próprio caminho. As sutilezas das ações indicavam que havia, tanto de minha parte quanto da dele, o interesse ávido de reaproximar nossa relação num novo tipo de vínculo. Do meu lado, ao chamar. Do dele, ao aceitar. Seria, enfim, o futebol um elo entre entes que se amavam e lutavam para não se afastarem.
Passei as coordenadas de onde eu estava. Em pouco menos de uma hora ele chegou. Ponguei no Tempra velho que tínhamos na época e fomos, felizes, embora ele ainda ressabiado pela aventura que, dizia a estatística da história, terminaria em derrota rubro-negra, ao Palestra Itália.
A CHEGADA
Não era a primeira vez que íamos à casa palmeirense. Em frente ao antigo portão de visitantes tinha uma rua que vivia vazia. Era ali que eu sempre parava, mas não foi ali que paramos. Na tentativa de ganhar tempo, paramos mais perto da entrada do Palmeiras, numa travessa da Turiassu, que julgávamos estar mais “na mão” – não, não estava, mas na pressa, quem há de raciocinar com clareza? Estacionamos e desembarcamos semi-ofegantes, meio correndo, nos julgando atrasados. Quando tomamos a principal via de acesso ao estádio palestrino, um susto. Estava tudo pintado de verde. Palmeirenses dominavam os bares, bebiam, comiam. Ninguém nem aí para o atraso da hora. Tinha alguma coisa errada. No caso, eu.
– Amigo. Que horas é o jogo hoje?
– Nove e quarenta e cinco.
Para mim, que havia, afinal, estimulado a loucura, o horário da partida era oito e meia em ponto, e já quase dez minutos tinham corrido depois do dito apito inicial. Aliviados pela nova informação, nos olhamos satisfeitos. Os batimentos cardíacos desaceleraram, no que pudemos dar ouvidos ao ronco de estômagos que nada tinham comido desde o almoço. Havia tempo, por fim, prum salgado barato, uma bebida qualquer e comprar o ingresso sem correria.
A FESTA
Era uma bela festa da torcida palmeirense. Com o time recém-rebaixado – último prego do caixão martelado pelo próprio rubro-negro baiano numa derrota por 4 a 3 no Barradão há não muito tempo – mostrava sua paixão na adversidade. Cantava, pulava, gritava seu amor pelo clube. No sábado, dali a três dias, estrearia no calvário da Série B. Armadilha do destino, reencontrava seu algoz já nas oitavas-de-final da Copa do Brasil querendo recolocar-se como gigante que é.
Eu e meu pai, devidamente saciados, decidimos entrar um pouco adiantados no estádio, como de praxe. Rapidamente chegamos ao portão de visitantes. Não havia fila para compra do ingresso. Depois da revista pela Polícia, subimos as escadas que davam no pequeno pedaço de arquibancada destinado aos apoiadores visitantes. Encontramos alguns rostos conhecidos, os de sempre em cada jogo.
Entrar mais cedo no estádio é um ato de preparação essencial. A expectativa vai sendo criada, empilhada, nutrida. Você vê a torcida crescer. Ouve os cantos ganharem volume. Sente o cimento tremer quando pulam. A atmosfera envolve e inebria. Se segura: vai ter futebol!
Do lado de lá, havia a impressão, mesmo assim, que bastava uma fagulha para pegar fogo na tensão que acompanhava cada brado. Eram cantos de apoio com tom de protesto.
Na divisão entre lá e cá, entre a horda palmeirense e os poucos de nós que desafiavam o prognóstico numa agradável noite de outono, duas faixas de fita de baixo a cima. Entre as faixas, um raquítico cordão policial com não mais do que oito oficiais. No meio da torcida rubro-negra, mais uns quatro fardados, que faziam com retidão sua tarefa de intimidar quem havia pagado para estar ali. Não podia se aproximar da frente da arquibancada. Nem juntar gente. Nem cantar muito alto. Ouvi de um, que pela boca espumada de ódio, ou era palmeirense ou então havia trocado algo muito melhor naquela noite pelo trabalho sacrificante de policiamento em estádio:
– Não provoca, porque se eles vierem pra cima a gente não vai fazer nada.
Independentemente da falta de vontade do mal-humorado policial, a conta era simples: mais de mil deles para cada policial. Nem se fizessem ou quisessem fazer algo, chance não havia. Mesmo assim, persistíamos: Bora, Vitória!
O ar de pré-jogo espalha ventos de esperança. Em nossos mais exagerados sonhos, no entanto, jamais poderíamos imaginar o que estaria para acontecer.
BOLA ROLANDO
O Vitória foi a campo com Paulo Musse no gol; Aderaldo, Adaílton, Marcelo Heleno (depois Anselmo) e Almir formando a linha defensiva; Ramalho, Dudu Cearense, Dionísio e Zé Roberto na meiuca; Allan Dellon (depois Samir) e Nadson (depois Alecsandro) fechavam o 11 rubro-negro. Comandando as pranchetas, Joel Santana.
A equipe alviverde paulistana tinha nomes importantes, apesar da fatalidade do rebaixamento. Marcos, goleiro do penta um ano antes, protegia o arco local. Zinho, campeão mundial em 1994 dividia o meio-campo com Magrão, Corrêa, Thiago Gentil e Adãozinho. O defensivo esquema tático de Jair Picerni isolava Muñoz naquela quer seria uma inútil briga contra a zaga adversária.
Quando o apito trilou, o Palmeiras foi para o ataque no embalo da torcida. Não demorou muito, entretanto, para que os mais impossíveis sonhos da minúscula torcida rubro-negra começassem a se tornar realidade, e o desespero se instalasse nos mais de 12 mil palmeirenses que cantavam e vibravam.
Em rápida enfiada de bola de Allan Dellon aos 9 minutos, Nadson domina e toca cruzado, fraquinho, abrindo o placar. Foi a primeira falha de Marcos, que viveu dia de vilão em sua heroica história no clube. Delírio da torcida! Vitória na frente!
Pois nem 7 minutos bastaram, e Marcos falhou de novo. Depois de bater roupa em chute de Nadson, saiu estabanado, cometendo pênalti clamoroso no atacante rubro-negro. Ninguém de verde ousou reclamar. Com calma, Zé Roberto cobrou deslocando o pentacampeão: Vitória 2 a 0, aos 17 minutos.
Atrás no placar por dois gols tão cedo no relógio, a torcida vaiava estrondosamente o desconexo time palmeirense. Em mais três minutos, perderiam totalmente a paciência e eu, a voz. Em contra-ataque puxado por Dudu Cearense, ele lançou Nadson que dominou, invadiu a área e sacramentou o 3 a 0.
A diminuta torcida rubro-negra parecia anestesiada. A gente gritava “Negô!” mais alto que a calada torcida adversária. A gente sorria tanto e sem parar que chega doía o maxilar. Todos se abraçavam em comunhão. Não éramos mais desconhecidos que se encontravam aqui e ali. Éramos amigos de infância guardados debaixo de sete chaves e do lado esquerdo do peito. Que coisa maravilhosa é o futebol!
Em protesto, as organizadas palmeirenses dão as costas ao gramado. Não veem o afoito e contestado zagueiro Gustavo cometer falta violenta por trás em Nadson e ser expulso. O que já era difícil ganhou contornos de crueldade, agora com um jogador a menos. Isto era, claro, para eles. Porque, para nós, parecia que a alegria não teria fim!
Aos 39, um atenuante ao sofrimento palestrino. Em bate-rebate varzeano, a bola sobra para Thiago Gentil diminuir o placar. Mas nem houve tempo de o brioso selecionado baiano de sentir o baque. Nadson, três minutos depois, tratou de recolocar o inacreditável em seu lugar. Dribla Adãozinho na nossa cara, deixando o voluntarioso volante no chão para tocar na saída de Marcos: Vitória 4 a 1.
INTERVALO
Parte da torcida palmeirense ia embora. A que se dispunha a ficar sequer tinha forças para ofender a gente do lado de cá. Focava em xingar Mustafá Constursi e sua política de “bom e barato” para contratações, além simular o enterro do clube nas valas do jardim suspenso do Parque Antártica. Do nosso lado, o policial mais exaltado, no auge de suas funções, exibia cassetete em riste a quem se atrevesse a cometer o impropério de falar. Ainda assim, não diminuía nosso gozo. Em todos, a cara era de “quê que tá acontecendo?”
– Mas, rapaz, que diabéisso?
– Nadson presidente!
– E Marcos?
– Esse é Vitória roxo!
Ambulantes são saudados com alegria. Compramos uma água e um amendoim. Vai começar o segundo tempo.
Ensaio uma pirraça com meu pai.
– E aí? Valeu a pena ter vindo?
Ele sorri de volta. E responde a seu modo, com todo carinho.
– Vá tomar no cu, vá.
SEGUNDO TEMPO
Impiedade, seu nome é Vitória.
Em dois minutos, mais um teste para nossas gargantas já exauridas. Dudu Cearense arranca desde a linha que divide o gramado para invadir a área adversária e estufar as redes de Marcos. Vitória 5 a 1.
Um torcedor palmeirense invade o gramado, se embola na rede. “Não vou sair, não!” Queria, no afã de torcedor apaixonado, encerrar o jogo ali, coitado. Era demais para seu partido e maltratado coração de boleiro! Era aquele placar, aquelas humilhações todas…
Em contrapartida, aos de vermelho e preto, era bom demais para ser verdade! Me belisca! Já nada fazia sentido, não existia raciocínio. Embarquei num transe, num estado de experiência fora do corpo, de total entrega.
E já um pouco anestesiados com o tanto de gol que insistia em sair, em cobrança de escanteio de Almir, vimos o 6 a 1 numa cabeçada de Marcelo Heleno aos 20, em nova falha de Marcos. Não tínhamos força nem para comemorar! O efeito do excesso de estímulos causava aquele “barato” de prazer. Ainda absortos, assistimos ao belo gol em cobrança de falta de Corrêa dois minutos depois, diminuindo o folgado placar para 6 a 2.
Pois nosso transe foi interrompido por um tremendo choque de realidade.
Após o oitavo gol da partida, sentimos a arquibancada tremer. Olhamos para o lado e vimos a torcida palmeirense correndo em nossa direção. DESESPERO! A injeção imediata de adrenalina acordou a todos. Disparamos, instinto de sobrevivência ativado!, a correr rumo à saída. Uma mulher cai no caminho. Paro para ajudá-la. Preocupado com a aproximação dos invasores bárbaros, olho para trás para espiar e me surpreendo. A torcida adversária havia se dissipado. A correria era, na verdade, uma consequência de briga interna entre eles, afastando os de paz na nossa direção. UFA!
Ainda assim, quase todos do Vitória foram embora. Era suficiente, afinal! Eu e meu pai insistimos. Se pagamos, mas quá!, vamos ficar até o final! Sem tanta coragem assim para tomar assento no meio da arquibancada, arrumamos tocaia na boca da saída, escondidos atrás do muro. O policial falava lá de baixo para ouvirmos, num fingimento de conversa com o colega, “tem que ir todo mundo embora. Se os caras vierem, não tem como parar…” Mal sabia ele que de cocó quem entende é baiano, pae!
E na cocó vimos aquele que se tornaria um dos gols mais antológicos da vasta história de ambos os clubes.
Aos 31 minutos, Nadson é lançado na área palmeirense. O lance, inicialmente sem perigo, ganha conotações de comédia pastelão. Marcos chega antes, mas, num chute desengonçado e displicente, fura de forma bisonha. A redonda sobra limpa e mansa para Nadson dar números finais ao inesquecível Vitória 7 a 2.
Eu e meu pai nos entreolhamos.
– Bora?
– Já deu, né?
AFÔNICOS
Saímos do estádio para encontrar um cenário de desolação. Tinha gente chorando na rua, indignação era o lema de todos os de verde. Eu e meu pai, camuflados pelas roupas de trabalho, não somos importunados. Caminhamos a passos decididos até o Tempra. Ligamos o rádio para ouvir o finzinho do jogo. A transmissão profere palavras de fim-do-mundo. Vergonha era o termo mais repetido. E a gente ali, zumbido no ouvido por causa da algazarra e vozes que saíam num fiapo quase inaudível.
Pois eles comentavam de lá, replay dos gols, entrevista de Marcos… e a gente ria que doía ainda mais o maxilar, e agora também o rosto todo e a barriga.
Dormi, naquela noite, uma das noites mais agradáveis de minha vida. Parecia a continuação de um sonho fantástico que começara naquele maltrapilho Lance no chão. Uma armadilha do destino que nos levou, a mim e a meu pai, a viver um dia inesquecível, quando uma quarta-feira que tinha tudo para ser comum foi transformada em espetáculo e em magia. Quando senti no corpo bater um coração ainda mais rubro-negro. Quando vivi, à toda, um grande dia de ser Vitória.
Futebol ganha aura de magnífico porque mexe com sentimentos íntimos, que falam do fundo de nossa alma. É emoção, é senso de comunidade, é pertencimento. É o ativar da criança que reside em todos nós. Independe de resultado quando a conexão é feita em metafísica. Adaptemos Ortega y Gasset:
Futebol é o jogo e suas circunstâncias. E duvido de que tenha algo a ver com o jogo.
Ligamos os pontos e, voilá!, o torto se endireita, o quebrado se remonta em alegria e saudade. Aquele 23 de abril de 2003 foi mais uma etapa da cicatrização de feridas abertas na relação pai e filho, com recuperação sempre pautada pelas palavras nunca ditas, pelo olhar de acolhimento, pelas experiências em conjunto, pelos interesses em comum que nos aproximavam com força. Se trincasse novamente, certamente lá estaria o glorioso Esporte Clube Vitória, dentre outros afins, para nos socorrer.
POST SCRIPTUM
Veja a falta que a tecnologia fez. Não há, de minha parte, um registro sequer daquela mágica noite. Celulares com câmeras não existiam – e mesmo que existissem, não teríamos condições de comprá-los. Também, claro, não fomos carregando máquina fotográfica, luxo que não tínhamos. “Ter” era verbo que não podíamos conjugar.
Como recordação, guardei o canhoto do ingresso deste jogo por anos. No meio das inúmeras mudanças de casa, óh, céus!, ele se perdeu. Em vão, ainda hoje reviro gavetas e caixas de recordações buscando aquele registro.
Certa vez, em 2004 ou 2005, comentando sobre este canhoto com uma fanática amiga rubro-negra que tinha vindo morar em São Paulo, recebi uma proposta de compra. “Se encontrar, eu compro. Não importa o preço.” Mas eu nunca seria capaz de vendê-lo.
Nossa memória nos prega peças na maneira como armazena o passado. O que é mais antigo vai sendo varrido para a lixeira da mente, abrindo espaço no HD para novos guardados. Guardado tão bem guardado que duvidamos da veracidade, tão longe que está que mentira parece. No que pequenos pedaços de papel, fotografias, objetos, qualquer coisa!, viram materialização de que não estamos loucos, de que sabemos de onde viemos, por onde estivemos, e podemos provar!
Se eu, por um milagre, encontrar este canhoto maroto, em vez de vendê-lo, tratarei é de guardar com extremo zelo e carinho. Quem sabe até enquadrar. Seria a prova irrefutável da história vivida. Aquela noite, de conexão máxima com a Bahia, com o Vitória e com meu pai, não pode jamais ser esquecida.
Lembrando o grande Rubem Alves:
Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas, porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno.