Deitado no sofá, Titônio assistia intrigado ao desfile de 7 de Setembro na tevê. No diminuto ambiente estava boa parte da família, comendo água na bênção da folga de quinta e pela sexta enforcada. A cada close na tela, Titônio virava os olhos e ressoava muxoxos.
“Quê que é Titônio, homem de Deus?” Puxou Lucineide, sua irmã.
Ele olha de canto de olho para ela. “‘Que é’ é que ninguém sabe de nada dessa onda de independência. Culhuda, minha irmã, e da grossa!”
“Oxente, Titônio! Que história é essa?”
Percebendo-se no centro das atenções, ele se senta. “Olhe, chegue aí, vá. Na moral. Vou contar, mas é uma vez só.” A família se vira, prestando atenção. Ele, então, emposta a voz.
“Rapaz, esse tal de Dom Pedro é um menino amarelo que cresceu tomando Danoninho dentro de palácio. Barão. Mimado, fez beicinho para a família em Portugal, pois queria era mais dinheiro dormindo no bolso dele. Só que esqueceram da Bahia no livro da escola! Esse negócio de Brasil começou foi aqui. Chegaram tudo aqueles branco azedo de barco em Porto Seguro, distribuindo espelho e chapéu. Tomaram o que viram pela frente. Salvador é a primeira capital, meu patrão! Daí mudam pro Rio de Janeiro, declaram independência em São Paulo, e nem pedem autorização pra quem fundou isso aí que vocês tão vendo? É nenhuma! Dom Pedro que não era bobo nem nada veio foi antes por estas bandas pedir a bênção pra Painho.”
“Que Painho?” Perguntou, desconfiada, a irmã.
“Ora, Painho, Sinhôzinho, Coroné, tanto faz. Quem mandava nessas terras com certeza era chamado assim. Mas Dom Pedro não sabia de nada dos reggae da Bahia. Veio todo errado, mostrando título e currículo. Leso, chegou bem quando Neinha já tinha ligado o tacho de acarajé na Avenida Sete. E quem é besta de perder o acarajé de Neinha?”
“Ah, pronto! Neinha? Ela tem 200 anos agora, é?”
“Ela não, mas o ponto é da família, herdado de papel passado. Pega a visão. Dia seguinte o Dom apareceu mais cedo, mas quem entende de governo não entende de Bahia. Chegou bem na vazante da maré. Pois não é que tava todo mundo no baba na Conceição da Praia, tomando 3 piriguete por 5 cruzeiro debaixo dum sol de rachar?”
“Eu posso com isso?” Indignou-se, desta vez, Edivaldo, seu primo. “Nem futebol tinha no Brasil, chegou foi pra mais de 70 anos depois!”
“Você é abestalhado, é, Edivaldo?” Titônio estava bravo. “Você acha que gringo que não sabe nem sambar de lado vai ensinar moleque a bater um baba? Aonde!? E digo mais: já tinha Ba-Vi comendo solto naquela época!” Titônio se acalmou. “Bem, Dom Pedro tentou agendar com Painho, e era um tal de hoje a oito pra cá, era pro mês pra lá, caruru em Brotas, feijoada no Garcia… Prioridades, né, mô filho? O playboy se retou, montou no cavalo e se picou de volta pra São Paulo. Daí, ozado que era, mandou um ‘independência ou morte’ na beira do rio e um monte de gente comeu essa pilha. Quando soube, Painho pegou ar, “Pra cima de moá, não, senhor!” Armou banquete de sarapatel na Feira de São Joaquim, mas foi só pro ano que ele conseguiu reunir o conselho. Verão inteiro foi gente de atestado; depois foi chuva que não parava, e quem sai de casa todo molhado? Maria Quitéria, mizerávi sanguinolenta, finalmente juntou uns doido pra arrebentar os portugueses que estavam escondidos no Clube Espanhol. Foi madeirada prum lado, pipoco pro outro, que saiu branco fugido com o rabo entre as pernas nadando até Portugal!”
“Olha, cabeça,” Edivaldo falou se levantando com dedo em riste “que cachaça ruim é essa que você fumou, véi? Você é maluco, viu? Maluco!”
“Maluco o quê? Colé de mermo? Caia pa mão, vá! Ó, vou até me embora pra não dar na sua cara. 7 de setembro na Bahia é barril, pai! Minha independência é 2 de Julho.”
Titônio saiu pisando duro, bufando, não sem antes assegurar duas cervejas geladas para tomar no caminho. No que passou da porta, ainda ouviram ele gritar de lá de fora:
“É a porra uma coisa dessa?”
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CRÉDITOS DA IMAGEM:
Quadro Independência ou Morte ou O grito do Ipiranga.
Óleo sobre tela. Pedro Américo, 1888
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