Para entender a Bahia, prato cheio de verdade, sem essa de só a cabecinha, de uma vez só e até o talo, apenas a Lavagem do Bonfim.
Não se sabe ao certo a cronologia do assunto, e quem disser que sabe ou lá esteve no começo – do que duvido – ou escolhe uma fonte pra assumir como verdadeira, e segue o cortejo.
Mas na Bahia, lugar onde o profano se disfarça de crença para espalhar sacanagem e qualquer aglomerado de gente vira quizumba, o negócio é juntar a coisa toda dentro de uma bacia só, sacudir até que fiquem todos lambuzados de dendê e sair pulando agradecendo à porra toda e querendo arrumar quem ofereça chamego.
No contexto histórico uma breve explicação do que compõe a Bahia. Escravos obrigados a lavarem a igreja recém-construída, que transferem seus rituais disfarçados para o evento, aproveitando a tênue liberdade que teriam para explorar sua fé. Baianas e suas águas de alfazema perfumando e limpando o centro cheirando a novo. Deu certo. Quem entendia do riscado via que ali não se seguia festejo católico, não senhor.
Nos quase oito quilômetros do trajeto desde a Igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia até a colina, o burburinho ia engordando, abraçando quem de bobeira no caminho. Povo foi chegando e chegando, sem restrição, entrava e fazia como lhe conviesse.
Saravá!
E quando povo chega, meu filho, é a festa do isopor, abre espaço pro gelo, e logo é um tal de abrir o porta-malas do carro com aquele som poderoso e tascar um Psirico nas alturas, porque o reggae vai comer.
Tratava-se do exercício máximo da libertação, assim como o Carnaval, embora este último tenha sido deturpado no que transformado de massa em camarotes, muito embora haja resquícios de originalidade no Olodum subindo a ladeira e abrindo a sexta-feira no Pelô e na Mudança do Garcia, quase extinta, que renasce aos poucos.
Era um grito de libertação! Enquanto o Carnaval é a festa da esbórnia, – não que baiano não goste disso, pelo contrário, se não envolve esbórnia, não prospera – mas se abraça o religioso, a alforria é dobrada. Ou triplicada, veja: liberta-se dos grilhões da escravidão (embora ordenado pelos senhores de escravos); performa seus ritos religiosos fortemente oprimidos; e ainda engana um monte de gente.
Em se tratando de dissimulação, na Bahia só tem PhD.
No que o grito contido de liberdade virou reivindicação, naturalmente. Quem protesta em silêncio uma hora começa a exigir. O escondido vira escancarado. E tome faixa, e tome protesto, e tome esculacho, e tome igreja fechada, e tome povo comendo água, e tome música e batuque, e tome intervenções.
A bênça, meu pai.
Nos varandás, muitos meninos se tornaram homens. No lombo do jegue, as cargas do que cansados de levar nas costas, as agruras do cotidiano, e que nos deu uma das mais lindas expressões da província: mais enfeitado que jegue na Lavagem do Bonfim.
E, espelho do escárnio e arremedo de autoridade, quem tem sob si a caneta reformadora da lei entende que se não dá pra frear a horda, pelo menos pode excluir os jegues.
Quem não conhece aquele que segue a tradição da missa pela manhã, aquela reza pro santo depois, vestido de bata branca e colar de contas do Orixá que lhe guarda? Por via das dúvidas, pode.
Eparrei!
Não esqueça do sinal da cruz. Acenda a vela, zifio.
No passar dos anos, misturou-se tudo. Bonfim e Oxalá fundiram-se em uma única entidade. Senhor das graças alcançadas, líder máximo do sincretismo religioso baiano, sem vergonha de se dizer multifacetado, porque uma coisa é outra coisa e outra coisa é uma coisa.
Ajayô, meu senhor do Bonfim!
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É hoje, dia 12/janeiro.
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