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No campo do talvez (ou como a paixão argumenta)

No campo do talvez (ou como a paixão argumenta)

O que foi exatamente que aconteceu? Aquela adrenalina, aquela sensação de forte insegurança, aquele ardor que provocava sorrisos contidos e muitas dúvidas?

Faz sentido, imagino, que nos fechemos a tal instante. Autoproteção, acima de tudo. E se nos machucarmos? E se não der certo? E se eu abrir mão de tanta coisa por nada? No mundo do nada, pouco vira muito.

Sentimos medo, sobretudo, da materialização frustrada, da expectativa transformada em realidade.

Expectativa: a alegria de uma lembrança construída sobre nada, a não ser um arremedo de passado que se entrelaça conforme nosso imaginário.

Buscamos na nossa consciência a racionalização para o não sentir, e tomamos rumos opostos. Ora, se deve seguir cada um seu rumo, não seria melhor não saber de você, para que nossa história seja sempre perfeita? O ciclo da imaginação não permite erros.

Ou não é justamente a expectativa da realização que nos mantém vivos, no limite máximo dos nossos desejos?

A possibilidade do concreto, por menor que seja, é que dá oxigênio à fantasia. Queremos acreditar na fantasia que possa ser verdade. A fantasia total serve como encantamento momentâneo, alheios ao nosso viver, não tem aderência. Quero você ainda mais por saber que você existe, em algum lugar.

No que a criação do que é nosso supera qualquer história.

Neste caso, existe melhor do que a nossa? A minha criada por mim, a sua criada por você?

Passa-se o tempo, a vida segue, as contas chegam, e banalidades dão as cartas de como a vida tem que ser. O poder do absurdamente comum e insignificante. O dia-a-dia tem uma capacidade incrível de nos afastar de nossas vontades.

A realidade que destroça a expectativa não é a materialização do fato sonhado, com todas as suas nuances quase inteiramente distorcidas, mas a rotina.

Que ironia: tememos a realidade que nos decepcione e nos refugiamos na que nos castra, por aquilo que nos delega uma falsa de sensação de controle. Que diferença, então, faz?

No que há de se propor uma nova perspectiva: será que é assim tão ruim esperar o espetacular? Não seria preferível frustrar-se aqui e ali, mas sempre almejar o divino, a fazer um pacto com o medíocre?

Quem consegue calcular o desenrolar deste enredo? De qualquer um, aliás?

Na resiliência me pauto, mesmo que fugindo da praticidade do cotidiano, este sacana que nos puxa para baixo e nos traz ao mundo de fila-de-banco.

Que será que vale mais: uma tarde de glória ou uma vida de racionalidade calculada?

E no caso da concretização do esperado, se a memória reconstrói tudo, não haveria de apagar uma eventual frustração e manter tão somente a expectativa, como se nada tivesse acontecido, substituindo por uma nova? Subestimamos a nossa tendência ao autoengano.

Assim sigo e sonho, recriando e recontando nossas aventuras. Crendo que no entregar-me aos seus braços faço-me completo em si, mesmo que no instante.

Talvez alguns amores tenham que existir apenas no campo do talvez para existirem.

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