Quando eu ainda carregava o chassi de grilo dos meus 13 anos de idade, acompanhado de um motor sem qualquer maledicência para entender o que estava acontecendo nas entrelinhas, conheci a figura que, para mim, até hoje, é a mais respeitada do carnaval de Soterópolis.
Contextualizo.
Celina, comadre de minha mãe, tinha apartamento no edifício Plaza, em pleno Campo Grande, pertinho do Forte de São Pedro, por onde passava o hoje revitalizado circuito do Centro, até então único, não tinha esse negócio de Barra/ Ondina. Bicho pegava era ali. E, claro, tinha o Pelourinho que o Olodum invadia na sexta, coisa que nunca vi nem vivi, eu só ouço falar. O ano era 1996, e ali na frente passaram todos os artistas que importavam na época, gente do quilate de Chiclete com Banana, Daniela Mercury, Timbalada, Asa de Águia, Cheiro de Amor e Netinho.
A corda ainda não era essa formalidade toda, ia muito bloco solto.
Lembro do barato que foi quando a Mudança do Garcia passou, seus jegues reciclados da Lavagem do Bonfim, cheios de mensagens e uma alegria contagiante. Em cada intervalo dos trios, entre o que já foi e o que daqui a pouco passa, lá saíam todos para o meio da avenida, em especial meu pai, que em nada se avexava pela presença de amigos, comadres, mulher e filhos, e distribuía cantadas às polpudas morenas que lhe cruzavam a vista.
Era uma situação que, está óbvio agora, eu não tinha maturidade, pêlos no corpo e malandragem para entender. Mas era lindo! Gente mijando para tudo quanto é canto, beijos na boca distribuídos como se fosse bom dia, e um sol de rachar na cabeça.
Foi quando me deparei com inúmeras situações para formar a certeza que permeia o meu entendimento de quem é que comanda a hierarquia carnavelesca soteropolitana.
Não, não era o pequeno grupo de policiais militares que passavam em ronda eventual, quando a gente ficava quieta e fazia cara de não-fiz-nada. Também não eram os cordeiros, que separavam os que podiam dos que não podiam. Muito menos eram as morenas polpudas, que atraíam tantos olhares e gracejos e tinham para si a oportunidade da escolha.
― Uni, duni, tê, o escolhido foi você!, e pegando o selecionado pela mão, saía o casal para consumar seu amor.
Não e nécaras.
Vi uma, vi duas, vi milhares de vezes a cena.
Não importa o momento. Podia estar trio passando, couro comendo, chinela cantando; para eles não tinha hora errada. E povo respeita, porque quando se trata de item de primeira necessidade, a gente atende ao apelo:
― Ó O GELO!
E passava nego com saco de gelo no ombro, à procura de repor seu isopor. No trajeto, povo abrindo que nem trânsito para ambulância do SAMU, uma lindeza.
Baiano dando passagem é sinal de que a pessoa cresceu na vida.
É celebridade.
Porque a vida pode ser dura o ano inteiro, mas, não estraguem a minha cerveja em pleno Carnaval!
Um dia vou fazer um experimento. Pegar aquele trânsito lascado de fim de dia na Paralela, colocar um autofalante em cima do carango e sair gritando “Ó O GELO!”, e observar todo mundo abrindo caminho de sorriso no rosto, abrindo o vidro e já gritando:
― É quanto a piriguete, mô pai?
― 3 por 5.
― Pronto. Vê logo 6 que eu não gosto de troco.
Vou ficar rico.
Crônica foi publicada posteriormente na Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 21 a 23.
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