Os primeiros raios de sol invadem meu quarto sem barreiras, acordando-me devagar, beijando-me a face carinhoso. De canto de olho vejo o horizonte metade do grande círculo alaranjado, que pinta em multicores o céu em breve a ser apenas azulado. A janela aberta me deixa tocar o frescor da primeira brisa da manhã, ainda molhada de orvalho.
Espreguiço-me, longa e preguiçosamente. Estico aqui, estico ali. Um bom dia para o corpo, por assim dizer. Ponho-me sentado na cama. No beiral da janela um pássaro toma a água condensada da noite. Ele me olha, sorri, um pio pia, e volta para os seus afazeres. Passarinho passarinhando.
Levanto-me, lavo o rosto. Olho-me no espelho, noto mais alguns cabelos brancos. Um grisalho natural traz uma certa distinção, penso. Escovo os dentes sentado na cama, observando o passarinho que passarinha, que pia mais um pio, agregando companhia. Passarinhos passarinhando.
Desço as escadas para a sala. Em todas as janelas vê-se a neblina da luz que domina o ambiente. Centelham as minúsculas partículas de poeira que pouco a pouco vão tomando assento. Esquento a água para passar o café, e em um instante uma explosão de imagens se faz em vapor, em luz.
Em som, na fervura que borbulha. Na água que irrompe o pó do café, ultrapassa o filtro e cai em gotas vitoriosas na garrafa térmica.
A geladeira a ronronar sua vivacidade.
Os sentidos aguçados.
O cheiro forte do café, da terra, toma conta, energizando também a alma.
Seguro a xícara com mão em volta de seu corpo, acalentando-me as extremidades. É praticamente um abraço.
Abro a grande janela da sala para fora, o vento a acariciar a cortina. Encostado no parapeito, dou suaves goles na xícara, o café me abraça por dentro.
Na mesa da cozinha uma fruteira, com bananas, maçãs, mamão, uma tangerina. Um pedaço de pão caseiro e um pote de manteiga. Sinto-me tranquilo por saber que está ali, mas ainda é cedo demais para mastigar.
Os pássaros passarinhando e piando seus pios passam, satisfeitos, daqui a ali. Vejo seu passar e sorrio no quanto seria legal saber voar. Pelo menos o suficiente para ver ao longe. Não muito lá em cima, pois tenho medo de altura.
Na ruptura da normalidade do espaço-tempo onde existe apenas a câmera lenta, o eu e nenhuma atribuição de sentido ou de raciocínio.
Não há antes nem depois. Não há pressa nem prazos. O processo segue no ritmo do possível, acelerando até quando deve, tomando cuidado para que a realidade não chegue de supetão. Talvez se estabeleça na velocidade da neblina extinta pelo sol mais alto, quando mais não se vê poeira dançando no ar, nem mesmo o próprio ar.
O sol entrando horizontal pela moldura é o portal por onde nos entregamos ao nada, à não-existência pensada.
Somos todos niilistas no despertar.
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