A minha primeira interação com o Rio de Janeiro já foi intensa por demais, lá no longínquo 2010. Eu chegava para um projeto que me faria morar na antiga capital do Império por alguns meses. Trabalho que exigia terno e gravata, em pleno verão carioca. Método eficiente de tortura, se estiverem buscando alternativas.
Havia muita expectativa envolvida.
Já a chegada tinha sido maravilhosa, pouso no Santos Dumont, um tapa na cara de quem chega, cidade gritando que não há lugar mais lindo no mundo.
E o tanto de poesia que havia?
No trajeto do aeroporto para a Barra, cruzando a Zona Sul, um casal discute em plena calçada, para quem tivesse ouvidos, porque mesmo sem querer, ouvir, ouviria. Ele, sem camisa, de bermuda e chinelo; ela vestida para trabalhar, aos prantos. Alguém pegou alguém com a boca na botija, e dado que ela chorava e ele se desdobrava em explicações, estava lógico qual o seu respectivo papel de alguém. Compartilhavam a sina de uma paixão posta à prova com quem se interessasse.
Exibia-se um dos elementos máximos da destituição da separação do público-privado. O camarada abraçava a humildade e a humilhação com a coragem que somente os culpados podem externar. Era um tanto tocante.
Entendo que o Rio está no meio do caminho: de um lado, os relacionamentos profissionais que São Paulo acha que são bons, mas afastam e isolam; do outro, os relacionamentos pessoais, que unificam em detrimento da produtividade, como a Bahia segue diariamente. Uma alegria de viver de fazer inveja. E os problemas que ajudam a construir o ideal de carioquice.
Na chegada desta nova viagem, o vendedor do Zona Azul daqui, o Rio Rotativo, tenta me convencer de que eu teria que comprar as folhas para hoje, dia 21 de abril. Argumento “é feriado! Não precisa!”; ele retruca “a placa diz de segunda a sábado e amanhã é sexta”, eu volto “mas é feriado!”, ele insiste “mas eu trabalho!”. Obviamente, não comprei. Obviamente, não precisava. Obviamente, lá estava ele pela manhã, tentando encontrar um outro mané para lhe garantir uns caraminguás. Ele me vê e acena “obrigado, viu? Tenha um bom dia!” todo sarcástico, dando joinha. Veja bem: tentou passar a perna e ao não conseguir, ainda age como se eu tivesse a obrigação de ter caído! Mas quá. “Valeu aí, irmão, mas você bem que poderia ter me ajudado a garantir o leite das crianças.”, é o que tenta dizer com seus gestos.
Ainda bem que não terei que andar de táxi. Na praça, a banda toca no ritmo da bandidagem. Um amigo, esposa e filho no banco de trás, conversa com o taxista, que conta que agora a moda é sequestro de cachorro. E finaliza “mas cada um sobrevive da maneira que pode, né?”. Sequestro é aceitável, desde que precise, portanto. Pára aqui nessa esquina, seu moço, que pra mim já deu.
Há de se ignorar, no entanto, porque este é pedaço pequeno – o mal necessário, embora constante – da cidade maravilhosa.
Entro no prédio de um amigo, que ainda não tinha chegado do trabalho.
– Boa noite, amigo. Tudo bem? – saúdo o porteiro já na parte de dentro do prédio; bastou um aceno.
– Tô tentando.
– E tá conseguindo?
– Dentro do possível. Tá difícil.
Um outro porteiro, do Ceará, meio calvo, mas de longos cabelos compridos, nos entrega uma ficha para preenchermos. Se eu escrevesse Michel Temer não faria diferença. Furtivo, evita contato visual. Fala alguma coisa, quase inaudível, mas nem se alto fosse seria capaz de entender seu dialeto. Sorrio e aceno, “boa noite, meu amigo!”, ele sorri de volta.
Em poucos minutos já estava dentro do apartamento, sem nem um documento apresentado a não ser o sorriso. No elevador, uma senhora já de idade, meio corcunda, baixinha muito baixinha, pára e olha para o alto – eu, no caso – se apresenta e puxa papo.
– A única coisa que eu invejo é altura. O resto eu tenho.
Cheia de desejo e sabida da zombaria do que diria a seguir, não tira os olhos de mim.
– Olha que homem bonito!
Para subir ao quarto andar, o Luís, zelador/ porteiro/ faz-tudo nos acompanha; deve ter se tocado, no meio do caminho, que deveria ter perguntado um tico mais. Ele ri e nos conta um pouco sobre a simpática senhora:
– Ela fica até duas horas da manhã conversando comigo na portaria. Reclama que os filhos não vêm vê-la. Mas está cheia de saúde, vive pra cima e pra baixo.
No dia seguinte, no elevador, encontramos um senhor, a quem ofereço segurar a porta para que entre. “Não precisa”, diz ele.
– Tudo bem com o senhor?
Já vou puxando papo enquanto dividíamos o pequeno espaço no ascensor.
– Um pouco de falta de ar, mas tudo bem, sim. Com 90 anos é normal, né?
Imagino que seja. Aparentava muito menos e nos contou que sairia para sua caminhada matinal, precisava passar na farmácia também. Um dia comum para ele, enquanto nós de férias.
Este é o olhar que tem que ser direcionado ao Rio de Janeiro.
À natureza escandalosamente bela, claro. Mas especialmente às pessoas, que se definem como cariocas, não pelas suas profissões. São cariocas, saca? Cariocas de tudo quanto é canto; Sobral, Pelotas, Quixadá, Barreiras, Sinop. Ser carioca é uma questão de estilo, tem que levar jeito. Cabe a quem chega, separar a malandragem institucionalizada, porque há mais que isso. Não é pessoal, é pra geral, parceiro.
Fosse Nizan Guanaes carioca, o slogan oficial deste tumultuado pedaço de paraíso seria “Sorrio, estou no Rio.”
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