Lendo agora
Picolé da Capelinha

Picolé da Capelinha

Muitos dos mais novos na velha cidade da Bahia sequer ouviram falar daquele que já foi, um dia, o maior empreendimento alimentício do Brasil. Kibon? Nestlé? Qual o quê! Teve um tempo em que o mercado MUNDIAL de picolés era dominado pela Capelinha.

Da Vinci sempre dizia, enquanto tomava uma gelada com a galera, que a simplicidade era o último grau de sofisticação. Simplicidade era a marca da Capelinha, mas escangalhava de com força a teoria do italiano.

O negócio revolucionou o mundo da administração, da economia, dos estudos de mercado, da matança da sede, da criação de oportunidades e do que mais tivesse. Era picolé gelado, barato e em tudo quanto é canto em meio ao calor desatinante de Soterópolis.

Talvez essas coisas de porta em porta, consultoras Natura e tais tenham copiado o modelo picoléico-capelínico. Na minha cabeça de garoto com sede, havia milhares de vendedores espalhados por todos os cantos da cidade. Gente que amealhava uns caraminguás e ainda chupava uns picolés durante o labor.

Capelinha era, também, oportunidade. Redistribuição de renda.

Para dar conta de tanta gente que trabalhava, deveria haver treinamento intensivo para uniformizar o processo de vendas. Esquema profissional padronizado, mô pai! Tá pensando o quê?

A começar pela vestimenta. O dia se iniciava com o povo de calça jeans e camiseta. Perto do meio-dia, a camiseta já não era mais necessária, e virava almofada para a alça do isopor. Mil e uma utilidades. No verão, já saíam de short Adidas anos 70, sem camisa, chinela e bora aí.

Passava pelo isopor. Aquele velho, sujo, furado, cheio de buraco, com marca de graxa, alça carcomida, escrito a hidrocor na lateral “CAPELINHA”. Dentro, os picolés aninhados uns aos outros, todo mundo de conchinha, abraçadinhos esperando a glória da boca infantil a lambuzar-se.

E hômi chegava no grito, aquele que despertava até menino dormindo, que invadia os sentidos e clamava tal qual ordem, “venha, porra, que eu tô mandano!” Até o baba parava; fair play. Daí que surgiu a criação do tempo técnico.

– Capelinha! Ói eeeeeeeeeeu!

Molecada vinha em festa.

– Tem de quê, moço?

Era uma festa de sabores.

Sempre começava com coco e amendoim, chegava no creme holandês e em algum momento passava pelo caju, pelo cajá, pela mangaba, pelo imbu (assim, com i, que nem imbigo), e por mais uma explosão de sabores. Não tinha esse negócio de separação, capinha em volta, não senhora. Era o VERDADEIRO TUTTI-FRUTTI. Tudo junto e misturado. Você pedia o de coco e ele vinha com canto de cajá, topo de mangaba, pedaço doce de leite, uma lambuzada de amendoim e o corpo com cor de imbu.

Na interação comprador-vendedor, no espírito da Bahia, as ramificações e personagens se chocavam, fazendo de cada palavra uma confluência cósmica que soltava e atraía energia.

– Tem de minduinho?
– Tem, mas acabou.

Capelinha era uma instituição baiana, que emanava do povo, de baixo para cima. Hoje perdida no esquecimento e no resquício de palitos gravados e capinhas que separam os sabores em carrinhos de sorvete de nova geração.

Gourmetizaram o picolé! Onde vamos parar? Até nos ambulantes, tem sacripanta querendo vender um por 8,90, promovido a sorvete no palito, com recheio de fruta. Não me engana, não! Ora! Capelinha era inteiro de fruta e com 10 centavos se satisfazia a garganta seca.

E não venha me falar que é exigência da modernidade, de regras sanitárias e o escambau. Sou saudosista do que sinto saudade. Perdeu-se a alma.

E perdeu-se um sabor inconfundível. O sabor do ingrediente secreto.

Imagine você criança. Chega meio ofegante, meio correndo. O tio abre o isopor para você ver o que tem. Era festa de branco, de verde, de rosa, de marrom, de amarelo, de laranja. Furta cor. Fruta cor. Você aponta para o que quer.

Neste momento, então, você percebe que do alto da testa do capelão desce uma gota de suor. O sol, inclemente, ativara, onde pele havia, as glândulas sudoríparas, que hidratam e refrescam e salgam e imundeiam.

Tudo em câmera lenta de alta definição.

A gota se desprende do limite do cabelo com a testa e escorre. Segue pelo meio, sobe no nariz e rasteja vagarosamente até a pontinha. Ela hesita. Vou ou não vou? E você ali, “ela vai ou não vai?” Aquela angústia, aquela expectativa. No que no ato final de sua morte, para delírio da arquibancada, Carruagens de Fogo tocando no background, ela pula numa acrobacia de braços abertos, duplo twist carpado, nota 10, bem dentro da piscina de picolé, repousando placidamente justamente no que você tinha escolhido.

Mesmo assim, nunca ouvi falar de alguém que tenha morrido de Capelinha. Já sobreviventes por causa dela, vixe, aos montes.

***

Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.