Um piano descompassado tocava nas caixas de som do restaurante em Ouro Preto, o Chafariz. Era estranho. Chamo um garçom e pergunto “quem está tocando é parente do dono?”
Apenas sendo parente seria permitido tocar os tempos errados, a nota semitonada, os dedos embaralhados.
Na resposta, tinha muito mais caroço nesse angu do que eu poderia supor.
O garçom comenta que quem tocava era a avó do dono, já falecida. Me traz a capa do CD gravado, lá estampada uma foto de uma velhinha bem velhinha.
Atento à curiosidade dos fregueses, o dono do restaurante vem ter conosco.
– Essa é minha avó. A gente conseguiu levá-la para um estúdio pouco antes de ela falecer. Já tinha mais de 90 anos quando gravou, nunca tinha entrado num estúdio antes. Por isso que tem um certo descompasso, tinha muita idade. O restaurante aqui era um cinema, que existia desde a época do cinema mudo. Depois as salas se modernizaram e tivemos que fechar, não acompanhamos a tecnologia. Quando funcionava, a gente recebia os baús com as películas e os rolos de filmes, e rodávamos sem som, claro. Antigamente, os cinemas tinham um espaço para uma orquestra tocar a trilha sonora do filme. Como este era o único cinema da cidade, então, tínhamos aqui também. Minha avó começou a tocar piano por causa disso. Eles recebiam, junto com o filme, as partituras das músicas que deveriam ser a trilha sonora. Meu avô comandava a bilheteria e o projetor, minha avó tocava o piano, ao vivo. O CD que você está ouvindo é de um desses filmes, das partituras daquela época.
Terminou com lagrimas nos olhos, puxando ar para controlar a emoção.
Pude me ver, e sei que ele também se via, num grande cinema de então, quando a gente se arrumava de terno e gravata e vestido de baile, e seguiam para o maravilhamento que sétima arte proporcionava. Talvez ele, guri, se escondesse atrás da porta e visse de canto de olho os atores e seus trejeitos, as histórias e seus sustos, as gargalhadas da plateia. Quando a luz subia depois da projeção, seu rosto era de encantamento, e correria para os braços da avó, que o receberia com um abraço e, quem sabe, um doce roubado na entrada apenas para o neto. Ele daria um tchau empolgado para o avô na sala de projeção, que o saudaria com um largo sorriso.
Cinema Paradiso era a história da família.
O que para mim era fantasia, para ele era memória e verdade guardada em caixa preciosa.
O piano insistia ora lento, ora rápido, ora pulando uma nota, ora tocando uma a mais.
Era o descompasso musical mais belo que já ouvi em toda a minha vida.
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