Mariliz acordou tarde no Domingo. A noite anterior foi de farra e festa. Despertou com uma leve dor de cabeça e uma pesada sede. Com os olhos ardendo e o corpo quase tremendo, caminhou com dificuldade até a cozinha do pequeno apartamento. Abriu a geladeira, buscou a garrafa de água que repousava plácida na porta, e de um só gole, tomou mais de meio litro. Sentiu-se saciada. Como uma a dor de cabeça lhe zunia renitente, encontrou um comprimido e tomou-o rapidamente com mais um pequeno gole.
No trajeto de volta da cozinha ao quarto, deparou-se com o grande relógio de parede que acusava ser quase meio-dia. Espantou-se pelo tarde da hora, mas logo deu de ombros; era Domingo. Foi quase rastejando para debaixo das cobertas, quando sentiu um pé estranho. Que pé era aquele?
Ao pé, seguia uma perna, e mais o resto do corpo de outro ser.
Quase gritou, mas tampou a boca para não acordá-lo. Quem seria?
Tentou lembrar-se, apertou os olhos, mas não havia pista consciente. Reviveu a bagunça de antes, aniversário da Martina, amiga de longa data, em dado pub da cidade. Por mais que tentasse, as memórias iam até a terceira dose de tequila na pista em comemoração.
Dali pra frente, era tudo branco.
Rastejou desta vez saindo da cama, avistou seu celular no criado-mudo ao lado, pegou-o o mais discretamente possível, e saiu na ponta dos pés, tomando cuidado para fechar a porta atrás de si.
Ligou para Martina. Chamou, chamou, e apenas chamou. Tentou uma vez mais, em vão.
Foi então que ouviu um barulho vindo do quarto. Assustou-se.
Em poucos segundos apareceu diante dela o nobre cavalheiro sem nome que, pelo visto, foi o prêmio pela noite anterior. Ele a viu, sorriu contido. “Tudo bem?” Perguntou onde havia uma toalha que pudesse usar para tomar banho. Ela, ainda sem palavras, caminhou até um armário no pequeno corredor que ligava a sala ao quarto, entregando-lhe uma. Ele agradeceu e seguiu.
Ela buscou o celular, tentou a Martina de novo, ainda sem resposta. Desesperou-se levemente. Sentou no sofá, apreensiva, chacoalhava a perna freneticamente.
Quem era aquele homem?
Pensou em contornar a situação de maneira prática.
“Oi. Obrigada pela noite. Vamos nos encontrar de novo, viu? Mas agora eu preciso correr porque é aniversário da minha avó, sabe como é. Me liga amanhã. Beijo, gato. Boa, ideia, Mariliz!” Pensou ela. “Chama ele de gato, de lindo, de alguma coisa fofinha que evite mostrar que não faz a menor ideia do seu nome.”
Ele saiu do banho, toalha amarrada na cintura, avisando que tinha escovado os dentes com o dedo. Ela sorriu tentando esconder o nervosismo. Balbuciou ser a vez dela no banho. Disse para que ele ficasse à vontade.
Foi ela, então, para o banho e ali ficou por um bom tempo. O comprimido fazia efeito, a dor de cabeça fugia-lhe. O toque da água morna na pele lhe fazia bem. Sentou-se no chão do banheiro, a corrente a escorrer pelo corpo, quase cochilou.
A dúvida lhe atormentava: Afinal, quem era aquele rapaz?
“Pensa, Mariliz, pensa!” Dizia para si.
Um flash veio-lhe à cabeça. Dançava em cima do balcão do pub. Duvidava, afinal, ela não era daquilo. “Será que era eu mesmo?”
Com os dedos enrugados, desligou o chuveiro. Enxugou-se sem pressa, quase esquecida da presença do estranho em seu ninho. Rememorando o intruso no seu cafofo, saiu coberta de toalha, não poderia deixar aparecer nada que comprometesse sua reputação, mesmo que suspeitasse que já a havia violado durante a noite.
Foi ao quarto, trocou de roupa sem ser importunada. Dali para a sala, para a cozinha e se viu sozinha. Nem sinal daquele homem.
Agora, será que estava louca? Será que haveria tido alguém com ela há pouco? Seria ele um fantasma, fruto de sua imaginação fértil?
Balançou a cabeça como se afastasse a imaginação.
O telefone tocou. Era Martina, que estranhamente disposta, a convidava para um brunch numa padaria de que gostavam.
“Em 30 minutos nos vemos lá.” Disse Mariliz, despedindo-se e marcando hora.
Seguia no automático, ainda sem entender muito bem o que tinha acontecido. Tinha apenas certeza de duas coisas: que tomou tequilas demais no aniversário da Martina e que tinha acordado com um completo estranho em sua cama.
Encontraram-se as duas. Martina começou:
“Você, hein? Quem diria, Mariliz, que você soltaria a franga daquele jeito!”
Ficou sem saber como responder. Afinal, de que jeito teria soltado a franga? Era tudo folha em branco.
“Vamos sentar?” Respondeu Mariliz, fugindo do assunto, procurando lugar.
O mâitre as leva para uma diminuta mesa com 2 lugares. Prestativo, volta com uma cadeira a mais para que elas possam apoiar as bolsas. Ele tenta estabelecer comunicação com as clientes, explica como funciona a casa, “tudo o que tem no buffet é à vontade.” Mariliz sente uma pontada de enjoo. Na boca o gosto acre da lembrança em bile.
“Você me dá licença um minutinho?” Pergunta ela para a amiga, que consente com a cabeça nem dando tempo de processar palavras, porque, de um tanto e de vez, quase derrubando a cadeira, Mariliz se ergue e segue trotando em direção ao banheiro.
No grande espelho do banheiro, ela lava o rosto, enche a boca d’água e gargareja várias vezes. Vê um pote grande de enxaguante bucal, usa uma, duas vezes para garantir. Molha o rosto, nem tem que se preocupar com a maquiagem; não passou. Vê um pouco de sujeira no canto de olho, rímel sobrevivente, que é limpado com um lencinho umedecido que, precavida, sempre carrega consigo.
Olha-se por uns segundos em indagação.
Que tinha acontecido?
Quem era aquele homem em sua casa?
E, principalmente, que ruga era aquela?
Ajeita a roupa, o sutiã, o cabelo, esboça um sorriso, depois um maior para não ver se tinha algo no meio dos dentes. Somente assim conseguiria sorrir, na força; naturalmente, impossível.
Martina está sentada do mesmo jeito de quando saiu, alguns minutos antes. Tentava disfarçar a ansiedade, embora não fosse bem-sucedida na empreitada. Ao ver Martina, Mariliz desviou rumo ao buffet:
“Vamos nos servir que eu estou morrendo de fome! E aposto que você também deve estar…”
A mesa era farta, bem servida, sem quantidade nem qualidade poucas; coisa fina, mas quá. Apesar da aparência do que se estava servido diante de si, buscou um chá, uma fruta, e voltou. A alimentação resumia-se à vergonha e à culpa que sentia. Dali a um pouco, Martina retorna com dois pratos cheios, ovos cozidos, pães e queijos, frutas, xícara de café, iogurte, granola; mel, um banquete.
“Vai! Conta tudo e exagera!”
“Contar o quê? Não sei de nada…” É o que consegue retrucar, sem mentir para a curiosa amiga.
“Ah, tá…”, responde Martina, acompanhada de uma larga gargalhada. “Vai, e o boy?”
Boy deve ser o espécime que já nem do rosto lembrava, embora o tivesse visto há pouco mais de uma hora. Será que o nome dele era Boy?
“Ah, sei lá…”
“Ih, Mariliz… Você faz o que fez ontem e agora vai ficar cheia de pudores? Justo comigo? Ah, não! Não, não, não.”
“É que…” Mariliz olhava para baixo, escondendo o olhar. “Eu não lembro de nada. Não sei o que aconteceu.”
“Nada?”
“Minha dor de cabeça me diz que eu tomei tequilas demais. E tive um flash hoje mais cedo de que estava dançando no balcão do bar do pub… Mas não pode ter sido eu, eu não sou dessas coisas.”
“Aparentemente, é, sim.” Martina desbloqueia seu celular e mostra um vídeo de Mariliz no balcão. “Ah, que é isso, ela está descontrolada…” Cantarola Martina, rindo sarcástica. Mariliz arregala os olhos e sua boca se abre numa caverna, queixo batendo na mesa. “A melhor parte é agora!” Alerta a amiga. Na tela, Mariliz, no ritmo da música, faz menção de tirar a blusa e para um rapaz, que a tudo via envergonhado, tal ato pareceu demais. Ele a puxa para baixo, “acabou a festa, galera”, para ganhar uma sonora vaia dos que assistiam ao espetáculo. Acaba o vídeo com Martina rindo no áudio ao fundo.
Uns segundos de silêncio se fazem.
Martina, uma vez mais, rompe o silêncio.
“Foi este boy que você levou pra casa, amiga.”
“Quem? O que me tirou do balcão?”
“Hm-rm.”
Mariliz sorriu levemente aliviada. Havia certa dignidade no rapaz, afinal.
“Ainda nada?” Retoma Martina. “Quando ele te tirou do balcão, você se debatia, me solta!, me solta!, batia nele, até que ele, finalmente, conseguiu colocar você sentada numa cadeira. Pediu uma água…”
“E começou a conversar comigo!” Fez-se um pouco de luz. “Nossa, olhando agora, ele foi muito legal comigo.”
“E achei bem estranho quando vocês saíram juntos para irem embora.”
“É, mas a gente não fez nada. A GENTE NÃO FEZ NADA!” Havia uma certa decepção escondida na voz animada quase gritando de Mariliz. Ânimo pela honra mantida, mas decepção porque, aparentemente, ele valia a pena. “Ele me levou pra casa, disse que eu não tinha estava em condições de ir embora sozinha. Ai! Ele me ajudou no banheiro, quando eu passei mal… Imagine o coitado! Ficou comigo, dormiu de roupa e tudo na cama.”
Enternecia-se pelo sabe-se lá quem era, mas que tinha sido seu salvador.
E apesar de não ser realmente daquilo, da bebedeira descontrolada e muito menos do sexo na primeira noite com um estranho, resolveu que aquela não seria sua história. Ele não merecia fim tão melancólico, tão samaritano.
Às amigas outras dizia que o levou para casa e conseguiu superar sua relutância. Ele não queria, mas devia ser só uma cena. Ela usou-o e ele a ela. Amaram-se intensamente. Augusto era o nome dele. “No dia seguinte, quando acordou, ele tinha ido embora, e nem telefone deixou. Sabe como é, né? Homens… Eu precisava daquilo, foi bom pra uma noite, mas deu. Não tenho mais idade pra isso.”
Martina concordou que corroboraria toda a história. “Homem é assim mesmo, não presta nem quando presta.”
Fato é que Mariliz nunca mais quis saber de tequila. Pensou várias em voltar ao pub, mas vai que encontra o Augusto querendo encontrá-lo? “Ele entenderia, ele é diferente.” Dizia, para mudar de ideia instantaneamente. “Claro que não. Homem é tudo safado.”
Melhor mantê-lo longe, um fantasma, coisa que é melhor não acreditar.
Sentia medo, principalmente, de ter que alterar sua percepção dos homens por causa de um, calejada que estava.
A dúvida atormenta, mas a certeza vem a galope.
***