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Casa da Mãe Joana

Casa da Mãe Joana

O clima em Canabrava era de terra arrasada. Um desavisado que por ali aparecesse tomaria o cenário como set de filmagem de um episódio de série de zumbis. Grama não crescia, tinta descascada, pedaços de reboco caídos no caminho. Na rede, alguns furos, mas nada que um bom remendo não fingisse que estava tudo em ordem.

Era o resultado de uma sequência de abandonos. Em poucos meses, a diretoria quase inteira havia sido desfeita. A equipe foi rescindida jogador por jogador. A lista de dispensa era longa, sobrou a base e mais um ou outro. Técnicos pingavam, perdiam, iam embora. Não havia rumo nem prumo. O último a sair sequer apagou a luz.

Era ainda certa altura do campeonato nacional, nem findo o primeiro turno. Se havia ponta de esperança, estava escondida n’algum canto inalcançável.

Ativo humano da agremiação, a torcida se mobilizou. Organizou eleições para retomar a virada. Nada de elevador, pra baixo não se anda! Dentre os candidatos que surgiram em campanha, o nome de Dona Joana disparou como favorita nem bem os nomes foram anunciados. Sua campanha foi arrasadora. Varreu as organizadas com carisma e simpatia. Arrebatou sócios com sorrisos e promessas. Havia, inconsciente, o sentimento de que no Vitória a casa sempre fora dela: A Casa da Mãe Joana.

Quando assumiu a cadeira de presidente, tratou foi logo de pôr em prática seu plano de recuperação em 19 rodadas. Como boa anfitriã, pôs mesa, passou café, assou uns biscoitinhos amanteigados. Flertava com o lúdico. Preocupada com as tradições baianas, chamou até certa baiana de acarajé para arranjar almoço para acalentar a sofrida horda torcedora.

No dia do jogo, era claro o desmantelo do adversário, ignorado na receptividade. Estavam acostumados a fazer da cancha rubro-negra extensão de sua sala de estar, botando pé no sofá, abrindo a geladeira e reclamando da cerveja. Desta vez, não. Na correria dos meninos da base, o rubro-negro sapecou foi logo 2×0.

No jogo seguinte, Joana prometeu feijoada completa, inclusive para sócios com ingressos, tomando cuidado para que os recém-inscritos no dia tivessem acesso. Grande festa se fez. A arquibancada, embora cochilasse no intervalo, satisfeita e de bucho cheio, contagiou a equipe. Um sonoro e impiedoso 4×1 estimulou a todos.

Sim, era possível! Jornais cantavam as proezas administrativas de Joana: “A verdadeira casa de mãe Joana!” Virou celebridade. Durante todo o segundo turno recebeu convite para ministrar palestras para grandes empresas e cursos sobre gestão. Recusou agradecida: “tenho que manter o foco no Vitória.”

Foi somente depois de sacramentada a permanência na Série A que grande jornal, finalmente, pôde fazer seu perfil e entrevistá-la:

– Joana, muitos dizem que seu feito foi histórico. Como você conseguiu?

– Oxe, meu filho. Simples. Trouxe a mesma filosofia que tenho na minha vida e na minha própria casa. Primeiro, afastei os coisas-ruim. Aquilo ali acaba com a energia, sabe? Comprei uma carranca e coloquei bem na entrada do prédio. Ajudou. Depois, a mensagem foi direta: quem manda na minha casa sou eu. Se não pudessem entender aquilo, porta da rua, serventia da casa. Mais alguns se foram, não fizeram falta. Por último, entendi que era a torcida que a gente tinha que agradar, não o oponente.

Era o resumo de todo o poder do óbvio.

Quem houve de complicar o tal do futebol?

* Gabriel Galo é baiano, torcedor do Vitória, administrador e escritor, cronologicamente falando.

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Artigo publicado em 24 de julho de 2017 no Correio da Bahia. Link aqui.

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