Era um dia que já tinha tirado muito de minhas energias. Trabalho em excesso, problemas para resolver, enfim, um dia útil como outro qualquer. Chamo o carro pelo aplicativo para voltar para casa. O dreno que sugou minha empolgação fazia com que eu não estivesse muito disposto a conversar com o motorista.
“Boa tarde. Roberta?”
“Sim, sou eu.” Já falei abrindo a porta do carro e procurando me sentar confortavelmente no banco de trás, sentada quase deitada, sonhando acordada com a minha cama, uma taça de vinha, meu mundo e nada mais.
Assim que éramos no carro eu, o motorista e seu violão, que repousava plácido e solto no banco da frente. O motorista é simpático, quer conversa e assunto. Os segundos avançavam e eu ficava mais curiosa. Afinal, era impossível não citar o elefante na sala, quer dizer, o violão como passageiro no banco da frente, algo absolutamente natural para o condutor. Sinto que ele tenta direcionar a conversa para o inevitável, e não consigo recusar sua ânsia, consentindo e esperando pelo melhor.
“Você toca?”
“Ah! Você viu meu violão?”
A pergunta não fazia o menor sentido por ter sido carregada de surpresa. Impossível não notar o violão! Melhor seria ele ter trocado a falsa surpresa pelo alívio da pergunta desejada finalmente verbalizada.
“Toco! Eu na verdade, sou músico. Isso aqui é só um bico, enquanto a minha carreira de artista não decola.”
Motorista de aplicativo é bico, raro encontrar um que não esteja. Todos estão, não são.
“Nossa, que legal! E você já tem alguma coisa gravada?”
“Não, eu toco mais em festa e barzinho mesmo.”
A minha curiosidade aumentava a cada momento. O tráfego, no entanto, faria quase impossível ouvi-lo tocar. Afinal, ora, o que estaria fazendo ali o violão a não esperando sua vez para ser dedilhado? Seria cada passageiro, na cabeça do músico wanna-be, motorista for-now, um potencial cliente.
Paramos num sinal vermelho, que ele conhecia ser mais demorado.
“Posso cantar uma música pra você?” Ele me perguntou com os brilhando de expectativa infantil.
“Mas, claro! Depois dessa propaganda toda, estou curiosa para ouvir você tocar!”
Ele sorri um sorriso do tamanho de São Paulo. Emboca o violão entre as pernas, corpo meio de lado para que o braço se estique para o para-brisa, uma mão nos trastes, outra nas cordas, emposta a voz.
“Você conhece Trem-Bala, da Ana Vilela?”
Como não conhecer? Ana Vilela é a Céu da vez, a Maria Gadu da vez, a cantora de voz doce e melodia bonitinha e letrinha por-um-mundo-melhor, uma fofurice que bombardeia as rádios, programas de TV, vídeos nas mídias sociais e é a trilha sonora ideal de propagandas mil.
“Opa! Conheço.”
“Legal! Vou tocar ela, numa versão que eu mesmo fiz.”
“Poxa, que bacana.”
“Ninguém nunca fez igual. Sou bastante criativo. Fiz um arranjo em moda de viola!”
“Lá vem…” pensei mas não falei, entre apreensiva e curiosa.
Ele uma vez mais ajeita o violão, pigarreia a garganta liberando as vias respiratórias e cordas vocais. Seus dedos deslizam nas cordas. “Belelém, belelém, belelém.” Um som canhoto se faz dentro do cockpit do reduzido automóvel. Eu, mesmo sem conhecer muito de música, sabia que havia algo de errado. Seja por causa do ritmo torto e despaçado, seja pelo desafinado do instrumento que dóia os ouvidos. E se naqueles parcos segundos eu já desejava uma surdez momentânea – tudo o que é ruim pode piorar -, ele começa a cantar.
“Não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si…”
Grasna em voz alta e num tom que somente poderia ser de outra música que não a que ele tocava. “Não é melhor tocar e cantar a mesma música?”, penso em comentar, mas meu esforço naquele momento está concentrado em não rir desesperadamente. O sinal ameaça abrir, ele para, recoloca em repouso o violão no banco.
“Bom, né?”
“Bem legal!” solto numa empolgação falsa, feliz porque ele não consegue ver o meu rosto pelo retrovisor. Não, não era bom. Não era nem um pouco bom. Ainda assim, não poderia eu jamais, e isto é certo, falar que bom não era. Assenti, concordei, sorri. “Gostei!”
Seguimos até minha casa trocando poucas palavras. Inventei uma ligação para fazer, precisava levar minha mente para outro canto, um que não tivesse música nem violão nem motorista-artista. Lembrei da minha cama, da taça de vinho, do descanso merecido e necessário. Quando por fim chegamos ao meu destino, ele se vira para mim e me entrega um cartão.
“Fica com o meu cartão. Se você precisar de alguém para tocar numa festa, é só chamar!”
Agradeço me despedindo e desejando boa sorte.
Há muito de pragmatismo e esperança naquele sorridente motorista. Penso que ele é destes que têm alma de artista, mas que não se perdem em frases bestas de “siga o seu sonho”. Seu pretenso dom é mais um sonho que um fato. Dia-a-dia, dirige seu hatch compacto pelas ruas de São Paulo, daqui a ali de acordo com cada apito na tela de seu celular e “aceito” de corrida, porque contas precisam ser pagas. Encanta-se com a possibilidade, não importando quão remota, de alguém descobrir o seu talento bruto. Enquanto isso, sorrisos de passageiros concordando com “bom, né” são combustível para que prossiga e se permita alimentar sua fantasia. Não somos todos, afinal, mártires de nossas impossíveis ambições?
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