“O melhor amigo do homem é o uísque. O uísque é o cachorro engarrafado.”
A célebre frase é de Vinícius de Moraes, bebedor profissional. Diz a lenda que, certa feita, o poeta sentou-se para tomar com Pixinguinha, e para seu desmantelo, descobriu-se ainda dente de leite; bebeu, encharcou-se, trançou as pernas e viu o mundo girar enquanto o genial músico permanecia impávido colosso.
Aproveitando o gancho da jurisprudência – de que melhores amigos de nós, seres humanos podem também ser seres inanimados –, refuto a hipótese de Vinícius. O melhor amigo do homem é o boleto. Ainda mais no começo do ano, quando festival de cobranças anuais se juntam à resma mensal constante.
Depois de alguns anos, decidimos seguir viagem ao litoral de São Paulo, a fim de aproveitarmos as festas da virada de ano. Com o carro cheio, honrando as tradições de quem farofa carregado com roupa de cama e espírito preparado para o engarrafamento monstruoso – esta segunda parte quase uma terça-feira comum na capital – montamos acampamento em Barra do Una, onde a chuva nos foi anfitriã com sua alegria molhada e renitente. O sol negociou uma trégua e deu o ar de sua graça, tentando compensar os dias ausente com calor extra, praticamente um para cada visitante. Dei um tapa na coloração epidérmica, saindo de natimorto-branco-escritório-sem-janela para ser vivo com sangue nas veias e melanina na pele.
Voltamos numa terça-feira à noite. A estrada regressando à selva de concreto imita a Avenida Paulista, começando no Paraíso e terminando na Consolação. Ainda sob efeito das festividades do reveião, aquele clima de esperança, planos e projetos, “este vai ser o meu ano!”, abrimos a porta do apartamento, fechado há mais de uma semana. Nada teria mudado não fossem os dois novos moradores, abandonados impiedosamente debaixo da porta, sem nem uma mão para acolhê-los por dias. Ali, deitados no piso frio da cozinha, ao tempo e sem afeto, dois boletos nos avisavam que a vida continuava.
Perceba que ser com pés chão e que no evita voos e sonhos duradouros demais é o boleto. Nosso humor, de yes, we can foi imediatamente substituído pela empáfia de uma quarta-feira qualquer, “quando vence?” O boleto é um tapa na cara, choque de realidade, “aqui é trabalho, meu filho.” A praia ficou para trás, o calor, o sol, a chuva, o mar, o rio, as mulheres de biquíni, os bronzeados camarônicos, a piscina, os churrascos, os sorvetes, o ar-condicionado. “Seja bem-vindo de volta ao seu mundo, meu amigo! Senti sua falta. Vai um boleto aí?”
Além do aspecto mundano do boleto, ele é um camarada presente. Se é nos momentos mais complicados de sua vida que você percebe o valor de uma amizade, o que dizer de um boleto, que não te abandona nunca, principalmente nos momentos mais difíceis? Não importa se você está preocupado porque gastou demais, se cônjuge fugiu para a Cochinchina nos braços de outrem, se emprego vai mal, ou qualquer outra coisa que valha: ele sempre está ali para você.
Como boleto não tem semancol, não tem essa de ignorá-lo. Não e nécaras. É tal qual João Bobo: um soco e se reergue; um chute e ele permanece de pé. Você diz “vá embora!”, ele abre os braços em acolhimento. Assim ele volta, mesmo debaixo de choros, súplicas e desesperos, insistente, “nunca vou te abandonar”, com valores cada vez mais altos, procurando intervenções em seu ânimo convocando seus amigos cobradores por e-mail, sms, mensagens em aplicativos, telefone e cartinhas timbradas de órgãos verificadores de crédito.
E se não tem jeito que dê jeito, melhor abraçá-lo e pagá-lo – não sem um muxoxo e um comentário sorumbático, afinal, temos sentimento! – lembrando da música que ensina que talvez “seguir a vida seja simplesmente pagar meus boleto e ir tocando em frente.”
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