Há algumas semanas está sendo amplamente discutido e questionado o auxílio-moradia oferecido a algumas instâncias da hierarquia do Direito na esfera pública. O tema foi trazido à tona ao ser necessário confrontar a lógica de que os que lutam pela moralidade são, por fim, imorais. Esta retórica tomou voz depois da condenação do ex-presidente Lula e obedece à seguinte premissa: se os que julgaram e condenaram são imorais, são, portanto, incapazes de proferir tal julgamento, por consequência, o ocorrido perde credibilidade e clama-se anulação por viés, inconsistência – inventaram e inventarão um palavrário alternado para dizer a mesma coisa.
Apesar da origem suja do tema – a dita moral dos moralizadores como derrubadora de um processo vigente – subiu o cheiro aos narizes da população de que algo está muito errado com os famigerados auxílio-moradia. Por mais que tampemos o ralo no melhor dos nossos esforços, uma hora o cheiro vaza. Deparamo-nos, então, com alguns problemas graves.
O primeiro diz respeito à existência do auxílio-moradia. Ele foi criado para auxiliar juízes em início de carreira, que passavam constantemente de comarca a comarca, por pouco tempo, sem possibilidade de assentarem-se definitivamente. Após esquentar certa cadeira, expurgava-se o benefício e o prestigioso juiz bancava suas próprias contas com seu polpudo salário. Acontece que o judiciário ficou anos sem reajuste, e os senhores de toga, com o carimbo comprobatório-assegurador do Ministro do STF Luiz Fux, expandiu o auxílio-moradia à toda a classe, como maneira, como colocou o juiz Sérgio Moro, de compensar os aumentos consecutivamente não obtidos.
A confirmação da intenção de se utilizar o auxílio-moradia como compensação salarial pode dar vazão a outras dúvidas. Uma delas está pautada no ponto de vista da Receita Federal. Ora, se um benefício mascara o salário a ser recebido, deveria ser passível de imposto de renda. O órgão da Fazenda, que fiscaliza com lupa qualquer rendimento estranho da população comum, continua-se a faz vistas grossas ao que convém à classe em comando do governo. Tomemos como base, num exemplo bastante lúdico, os jogadores de futebol que mascaram seus recebimentos salariais com os ditos “direitos de imagem”, o que vem gerando diversos processos e multas pesadas nos últimos anos, vide caso Neymar.
Outro ponto questionável é a deturpação da intenção original. Começou como amparo funcional a juízes em começo de carreira, o que é válido, e transformou-se em bônus compensatório a toda a classe, o que não é válido do ponto de vista moral, do ponto de vista ético.
O mais grave, no entanto, é a postura dos magistrados quando questionados sobre o assunto. Ontem o desembargador Manoel Queiroz Pereira Calças, novo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao ser indagado pelos jornalistas sobre o tema, irritou-se e, em tom irônico, disse “acho muito pouco o valor do auxílio-moradia.” Continuou afirmando, num tom visto anteriormente em Jair Bolsonaro e seu repaginado auxílio-cabaré, “é o que você queria ouvir? É a resposta que você queria?” Logo em seguida, encerrou a entrevista coletiva.
Foram muitas e marcantes as mensagens escondidas do novo presidente do TJ-SP em tão pouco tempo. Como ao defender que o auxílio-moradia é moral porque está previsto na lei – e aqui caberiam horas de debate sobre a evidente parcialidade de juízes que advogam benefícios para si, o que deixemos para depois. Confunde ele, como é comum, moralidade e ética com legalidade. Nem tudo que é moral está na lei, assim como nem tudo que está na lei é moral. Esta confusão é um truque semântico que não responde o caráter ético da pergunta, apenas cria jurisprudência ao dizer “está na lei, estou fazendo.” Deste mesmo argumento fez uso Marcelo Bretas, no caso da solicitação de auxílio-em-dobro – apenas mais um capítulo obscuro de nossa ficha corrida chamada história.
O que mais me chamou à atenção, no entanto, foi a postura do desembargador ao ser questionado sobre o assunto. O papel da imprensa é o de questionar constantemente as figuras de poder. “Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.” dizia Millôr Fernandes (1923-2012). O escrutínio dentro de uma democracia é parte viva do que a faz existir. Conceitualmente, sem a liberdade de questionamento não existe democracia. Sem liberdade de imprensa, sem liberdade de expressão, não existe democracia. Acontece que somos governados por uma gente que não admite questionamentos. Gente que viveu e sobreviveu levantando a bandeira do “você sabe com quem está falando?” Gente que se esconde na arrogância do poder da caneta que empunha para impor medo e retaliação. Gente que não consegue ouvir uma pergunta tão singela quanto “mas o senhor acha moral?” sobre um tema em voga sem sentir-se ofendido, perder as estribeiras e sair bufando porta afora, como uma criança mimada. Não estou tocando na questão técnica do referido, que pode muito bem ser capaz e executor primaz. Seu despreparo emocional, contudo, deveria ser inaceitável para alguém que exerce tão proeminente cargo público e que aparenta não entender que o Direito possui caráter fluido.
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