É véspera da abertura da Copa do Mundo. Um pai, fanático por futebol, coloca o filho de 7 anos para dormir. Dentre as dificuldades que ele tem tido com a educação de seu filho está a de passar a paixão pelo clube do coração para a próxima geração. Ele vê seus esforços sendo aniquilados por um Barcelona global, que ganha dos clubes locais na escala de atratividade. A Copa é a carta na manga para resolver de vez essa questão.]
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São Paulo, 13 de junho de 2018, 21:39h
– Escovou os dentes direitinho?
– Sim! – o filho abre um largo sorriso mostrando a arcada com esburacadas janelas sobrepostas, em cima e em baixo. O pai examina como se dentista fosse. Sorri em aprovação.
– Muito bem.
– Pai… – o filho começa em tom de dúvida – amanhã começa a Copa?
– Isso! Amanhã é a abertura. Rússia e Arábia Saudita.
– Arábia Saudita?
– É, filho. É um país do Oriente Médio.
– Tem alguém do Real Madri lá?
– Não filho, não tem.
– Mas na Rússia tem, né?
– Também não.
– Do Barcelona?
– Não filho… O time da Rússia joga quase todo em times da Rússia mesmo. E o da Arábia Saudita também!
– Os jogadores da Arábia Saudita jogam na Rússia?
– Não, não! É que os jogadores da Arábia jogam quase todos em times da Arábia mesmo.
– Ah… Que nem no Brasil?
– Ih, não mesmo… No Brasil quase todo mundo joga na Europa.
– Na Rússia?
– Não, na Rússia não.
– A professora falou que a Rússia fica na Europa.
– Sim, ela está certa, claro. Mas quando falo de Europa eu digo os maiores.
– Mas ela me falou que o maior país do mundo é a Rússia!
– Não! Quer dizer, sim, é o maior país do mundo, territorialmente, em área total, sabe? Mas quando eu digo maiores, estou me referindo a futebol mesmo. Espanha, Inglaterra, Itália e Alemanha, esses.
– Ah… E a França?
– França não é assim tão forte.
– Ué? Mas eu ouvi você falando que a França é favorita nessa Copa!
– A seleção da França, sim, mas agora estou falando do campeonato francês.
– Não é lá na França que joga o Neymar?
– Isso! No PSG.
– Ah, então ele não é assim tão bom, né? Porque ele não está nos maiores…
– Que é isso, menino!? – o pai se exalta um pouco. Consegue controlar o ímpeto e retoma. – Ele foi o jogador mais caro do mundo! E até o ano passado ele jogava no Barcelona. Lembra?
– Lembro. E ele saiu por quê?
– Olha, filho, quando você ficar maior, você vai ver que as preocupações da gente mudam e…
– Pra ganhar dinheiro, né?
– Como que você sabe?
– É que eu vi você falando com a mamãe que estava pensando em mudar de trabalho porque ia ganhar mais dinheiro.
– Mas é diferente.
– Diferente como?
– Não importa. – ele se exalta uma vez mais. Mas não pode perder a chance. Afinal, é a Copa do Mundo! – Mas, filho, você gosta do Neymar!
– Gostava mais quando ele jogava no Barcelona. Agora, do Brasil, gosto mais do Philippe Coutinho. E do Paulinho.
– Tá bom. Você gostou da camisa da seleção que a gente comprou?
– Mais ou menos…
– Por quê?
– Porque eu tinha pedido a camisa do Barcelona no Natal!
– Mas filho, é a Copa do Mundo! Todo mundo quer uma camisa do Brasil!
– Eu sei, pai… Mas…
– E olha só que legal: lá na Rússia já é amanhã! – o pai retoma, interrompendo o filho.
– Isso quer dizer que amanhã na hora do jogo aqui ele já vai ter acabado lá?
– Não, filho, não. É que… – ele se enrolou, afinal, como explicar fuso horário? – Vai ser ao mesmo tempo, mas é que tem vezes que aqui vai ser noite e lá já é de dia. Ou o contrário, lá é de noite e aqui é de dia.
– Ah, tá…
– Mas a gente vai ver todos os jogos juntos! E vamos torcer muito pelo Brasil!
– Tá bom…
– Então tá. Boa noite, filho. Durma bem. – o pai se inclina para dar um beijo no filho, quando ele volta a falar.
– Pai…? – o filho continuou como se fosse perguntar. – será que você poderia comprar a camisa do Barcelona pra mim?
– De novo isso?
– O Julinho falou que a Argentina joga sábado e a gente combinou de ver na casa dele aqui no prédio.
– E?
– Daí seria legal ir com a camisa do Barcelona, ué!
– Vai com a sua nova do Brasil, ué.
– Nada a ver! É a Argentina que vai jogar! E, pai, tem que ser a do Messi, tá?
– Filho… – o pai fala em tom de “melhor ter cuidado com o que você vai falar, moleque.”
– O Julinho falou também que o Messi é melhor que o Neymar. E é verdade, né? O Messi joga muito…
– Não! Não mesmo! E não quero mais saber de você andando com esse Julinho. – o pai se exalta, e nem tenta mais se controlar.
– Mas ele é meu primo! – retruca o infante, indignado.
– Não importa. E vá dormir. Amanhã tem jogo. E, ó, vai ter que ver tudo com a camisa do Brasil. E se gritar gol do Messi vai ficar de castigo.
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