Moscou, 14 de junho de 2016, 14:17 (horário de Brasília)
A festa no Estádio Luzhniki era bonita. A cerimônia de abertura foi rápida e simples, o que não foi suficiente para evitar que fosse revestida de um brega à la Dia dos Namorados. O garotinho entrou com Ronaldo em campo, feliz da vida. Ele, representando o sonho de quase toda criança de jogar futebol; Ronaldo, os atletas consagrados do maior espetáculo da Terra.
Quando finalmente a bola rolou, pondo fim a um sofrimento de quase 4 anos de espera, ambas as equipes demonstravam fragilidades. A Arábia Saudita parecia sofrer os efeitos do jejum do Ramadã. Já a Rússia, bem, a Rússia era a Rússia mesmo. Ainda assim, mais poderosa fisicamente, abriu o placar no comecinho do jogo, de cabeça. Daí o Sobrenaturalof de Almeidavski surgiu.
O fantasma das Copas passadas passou uma rasteira em Dzagoev, o melhor jogador Russo. O estádio se calou, apreensivo. O que eles pensaram você já sabem, começa com “fo” e termina com “eu”. Aqueceu e veio a campo Cheryshev. Canhoto habilidoso, desde muito jovem abduzido pelas canteras do Real Madri. E que é tratado como pólvora molhada na Europa.
Que melhor forma de descrever Cheryshev senão usado uma analogia? Pois aqui vai aquela que vai definir com clareza para que existe o ponta no escrete czar: Cheryshev é o Denílson da Rússia.
Bota fogo no jogo, Cheryshev, meu filho!
Pois o atleta do Villareal, talvez vislumbrando aquele contrato polpudo no recesso pós-Copa, tratou foi de escrever seu nome contra um mambembe time saudita. Se na primeira vez de frente pro gol, pecou por excesso de preciosismo, na segunda foi à glória com preciosismo em excesso. Dominou já de cavadinha, deixando passar dois zagueiros estatelados no carrinho, para ajeitar o corpo e bater pras redes. Estavam ali as qualidades que o gigante madrilenho vislumbrava.
Você talvez vá relativizar que, “tudo bem, contra a Arábia Saudita, né? Até eu!”, o que provavelmente será verdade, mas entenda, tem algo mais ali. Nem que seja apenas fagulhas, lances isolados, um drible desconcertante cá, uma levantada no público lá. Tem um manejo da bola que indica a arte moleque de um futebol que parece não pertencer aos russos.
Para não dizerem que foi exceção, pintou mais um gol no segundo tempo, pegando de primeira um chutaço de trivela para fazê-la dormir no ângulo do arqueiro verde que nada pôde fazer.
O que será de Cheryshev e da Rússia durante a Copa é uma incógnita. Talvez seja rebaixado ao limbo do ludopédio, fazendo companhia ao compratiota Oleg Salenko, que fez 5 numa só partida na Copa de 94, sagrou-se artilheiro da competição e… Quem é Salenko mesmo?
O fato é que isto não importa. Cheryshev escreveu seu nome na história da Copa do Mundo. Operou dois gols magistrais no maior palco do esporte mundial. Está lá, para sempre. Direito inalienável, irrevogável, intransferível. Poderá contar aos filhos e netos e amigos e afins quando arrebentou na abertura de uma Copa do Mundo jogando em casa, para os seus. De reserva eventualmente utilizado, sempre à sombra do craque do time, entrou para resolver e para dizer ao mundo que estava ali, que ele existe, e é bola. Efetivou-se, assim, como o primeiro capítulo da festa do improvável nesta Copa do Mundo, quando o belo é mágico e somos pegos pelo rabo da surpresa.
* Gabriel Galo é escritor
ARtigo publicado no site do Correio da Bahia em 15 de junho de 2018. Link aqui!