Diz-se que um jovem Mauro Galvão, recém-promovido aos profissionais do Internacional, batia bola num dois toques. Titubeia num lance, perde a bola e é repreendido por Falcão, o genial meia, dono do time. “Dá de bico!”, gritou Falcão, para que Mauro, zagueiro que deveria jogar de fraque, respondesse “Onde fica o bico?”
Se o bico é o recurso principal dos que levam à risca a sina de ‘bola pro mato que o jogo é de campeonato’, outras formas de bater na bola são mais raras. Como um peito de pé num sem-pulo, uma cavadinha na saída do goleiro, ou ainda os três dedos que enchem a redonda de efeito e magia.
No caso deste último, não duvidem, é tarefa realmente para poucos e fortes. Porque o recurso de encaixar a trivela não oferece média, tão somente as pontas. Ou a vergonha absoluta pela demonstração da falta de habilidade pelo chute que pega na orelha da bola, indo em direção totalmente oposta à pretendida, para ser alvo de chacota; ou o toque perfeito, que dosa beijo e tapa na bochecha da bola, fazendo-a rodopiar numa rotação em seu próprio eixo e ensaiar um movimento de translação em torno de um sol imaginário que ela circunda.
No Olimpo dos deuses da trivela em Copas do Mundo, o Brasil tem a sua cota. Nelinho em 78 na disputa do terceiro lugar pintou duas curvas no mesmo petardo. E quem não se lembra de Branco contra a Holanda na Copa de 94, naquela falta em que até Romário se encolheu para não atrapalhar aquele que seria o gol da classificação à semifinal?
Lançar mão da trivela exige coragem. Lance para atuação, pois. Há um no mundo, entretanto, que faz da trivela o seu passe comum. Alguém que nasceu promessa de craque, mas cresceu bom jogador com uma dose de decepção. Havia nele grande potencial. Misturando tratamento exemplar da bola com espírito guerreiro, Quaresma logo se transformou no rei dos três dedos.
Só que Quaresma excedeu a prescrição. Os três dedos passaram a ser a massa, não a cereja do bolo. Ainda paga o preço por rebuscar jogadas simples, três dedos quando a linha reta seria preferível. Talvez devamos enxergá-lo como uma espécie de artista que fez da trivela a sua assinatura, o seu traço característico inconfundível, o seu produto mais aperfeiçoado.
Só que de vez em quando a trivela encaixa. Como hoje no gol que abriu o placar para Portugal frente a um brioso Irã. Fora do eixo, o corpo posicionado se contorce para que o lado de fora do pé direito estabeleça-se entre tapas e beijos com a pelota, fazendo-a ter-se com a rede do lado de lá. Nesta hora, todo o resto se liquefaz e se gaseifica, sobrando apenas o extrato, o óleo essencial dos três dedos perfeitos.
Quaresma é o expoente maior de uma arte malandra, que não aceita mediocridade, que só premia os mais e os tais. Se alguém no mundo, um comum do lado oposto da classe de Galvão, houver de perguntar “onde fica a trivela?”, chama o Quaresma. Que nem ele, não há.
* Gabriel Galo é escritor
Crônica publicada em 25 de junho de 2018 no site do Correio da Bahia. Link AQUI!
FutParódias sobre a trivela, feat. Quaresma!