A importância de Zé Dirceu dentro da engrenagem petista é inegável. Homem forte de Lula, Ministro da Casa Civil, liderou com mão de ferro as negociações que criaram a maior base aliada já vista no Congresso. Preso três vezes na Papuda, em Curitiba, a primeira por causa do Mensalão e as duas seguintes no âmbito da Lava Jato, está solto e em programação ostensiva do lançamento de seu livro Zé Dirceu – Memórias volume 1, pela Editora Geração. De ônibus, roda o Brasil todo e usa sindicatos e outras instituições militantes para multiplicar as vendas e fortalecer a narrativa do partido que ajudou a fundar.
No dia 26 de setembro, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana de Recife, recebeu a equipe do El País para uma entrevista. Um trecho desta conversa ganhou destaque pela contundência das palavras do petista. Às aspas:
El País: Dentro desse contexto, o senhor acha que existe a possibilidade de o PT ganhar essas eleições e não levar?
Zé Dirceu: Acho improvável que o Brasil caminhará para um desastre total. Na comunidade internacional isso não vai ser aceito. E dentro do país é uma questão de tempo pra gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição.
É fundamental colocar em perspectiva o contexto no qual a resposta está inserida. A pergunta fala sobre a possibilidade de o PT ganhar as eleições e não levar. Ou seja: sofrer um efetivamente um golpe. A esta pergunta, há inúmeras respostas aceitáveis. De que a confirmação de um golpe de estado significaria a derrocada da democracia. Que o PT e o povo jamais poderiam se conformar com tal acinte. Que eles, obviamente, não aceitariam e que lutariam com suas forças para fazer prevalecer a vontade do voto brasileiro.
Mas não. A isto, Dirceu respondeu “vamos tomar o poder“.
Se há algo que Zé Dirceu não pode ser acusado é de amador. Exímio operador de bastidores – segundo relatos, flertando com a intimidação – diversas vezes pecou por falar demais. Com o microfone em sua frente, no entanto, o mesmo guerrilheiro de antigamente é liberado sem comedimento. Com Lula no comando, no entanto, havia um certo controle, uma focinheira que mantinha Palocci na linha de frente e Dirceu na retaguarda.
Resumidamente, calado Zé Dirceu é um poeta do pragmatismo político.
O que não justifica, no entanto, a irresponsabilidade de suas palavras. Porque extraídas de contexto, são incompreensíveis e representam um alerta. O “nós vamos tomar o poder” é algo assustador.
Ainda mais quando colocado no cenário em que Bolsonaro afirma que não aceita qualquer resultado que não seja sua vitória. Não apenas por fornecer ração para alimentar a militância adversária. Responde os flertes autoritários do ex-Capitão com outro flerte autoritário. Com isso, afeta a campanha de Haddad diretamente. Porque suas palavras se igualam, mesmo que como resposta a um golpe consumado, às de Bolsonaro e às de Mourão.
Trata-se, portanto, de um erro semântico grave. Tão grave quanto tais senadores e candidatos a governador petistas apelarem para o indulto a Lula. Porque cria fogo amigo na tentativa de manter a militância motivada.
Há questões, no entanto, que não devem ser discutidas. Primeiro porque se tornam combustível para os oponentes – para quem tem uma candidatura infinitamente geradora de estupidez como a do duo Bolsonaro-Mourão, manter-se calado é passo à frente. Segundo, como é o caso de Dirceu, solta as amarras de um monstro autoritário difícil de ser contido.
Deve ser complicado para o ex-cacique petista ser tolhido de sua relevância. Não pode votar, não pode ser votado. Está às margens da decisão no partido, beneficiando-o indiretamente – assim crê – com as vendas de seu livro. Ao mesmo tempo, não perde a oportunidade de dizer-se o cabeça pensante dos governos Lula e parte do de Dilma. Seu comportamento narcisista não permitiria omitir-se. Acontece que além de seu narcisismo contumaz, mora nele um guerrilheiro que só dorme à base de remédio. E de vez em quando desperta. Se não é amador de bastidor, é sim com as palavras.
Por fim, suas palavras devem perder força por conta do #EleNão que tomará as ruas neste 29 de setembro. Ainda assim, mesmo dentro de um contexto – e deve ser percebido como ele duvida de um golpe militar, e que outra medida de negação da confirmação do voto seria possível além dessa? – o perigo existe. O perigo do escalamento de tendências autocráticas. Seja de quem for.
Caberá ao PT desvencilhar-se de Zé Dirceu. Dirá que ele falou por conta própria. Há, no entanto, um ‘nós’ ali. Está mais do que na hora de os ditos aliados ficarem quietos e pararem de gerar material contra os próprios propósitos que dizem defender. Porque nestas eleições tenebrosas, em vez de discutirmos propostas, fartamo-nos de debater riscos e alertas. Se não devemos ignorá-los, por óbvio, não deveriam serem as bandeiras amarelas o tema central de campanhas que pautam o voto pelo medo.
Crédito da foto: REUTERS/Rodolfo Buhrer