Carma é um negócio poderoso. Sabe esse negócio de tudo que vai, volta, lei do retorno, etc e tal? Pois então. Às vezes este tal carma é instantâneo.
Estava eu deitado na manhã de uma terça-feira qualquer, em pleno ano útil, na branca areia da praia do Porto da Barra. Dia de sol, calor. Eu e talvez mais uns 30, aqui e ali, contando os barraqueiros e cadeireiros/guarda-soleiros.
No que, puxado pelo pé pela culpa do gozo extremo, você imagina aquele monte de gente engravatada, pegando trânsito, de frente prum computador travando e percebe o despautério que é estar ali deitado, cuja preocupação maior é se o queijo coalho é do dia, se a água de coco vai vir gelada mesmo, ou se levanta agora prum mergulho ou se vai dali a pouco…
Convenhamos que o universo não pode deixar um sacrista deste passar por tanto e refestelento prazer impune.
Vejam vocês que na Bahia, terra onde nasci e me criei até idade suficiente para fincar raízes firmes em solo fértil em que se plantando, todos dão, sou confundindo com estrangeiro. Estrangeiro, no caso, é qualquer um que da fronteira do estado pra lá.
O biótipo contribui. Meu tamanho, mais de 2 metros de altura, junto com o bronzeado de quem saiu ontem de um inverno nórdico rigoroso não colaboram e dão esta falsa impressão. Há também de se entender que para estar ali lagartixando na praia do Porto, em dia útil – pra quem? – era visitante, na certa.
Pois veio de lá o ambulante, carregando na grade de um, tudo. Qualquer coisa pelo que alguém possivelmente esquecido haveria, na urgência, de pagar. Era protetor, canga, biquini, sunga, chapéu, óculos de sol, havaiana… O que fosse, tinha. Penduricalhos planejadamente pendurados na armação do camarada que bateu o olho na lombriga alva gigante se espreguiçando e pensou “é hoje que eu vendo é tudo”.
Inspirou de vez aquele ar da malemolência, incorporando todos os textos e clichês da Bahiatursa, e se instalou do meu lado. Tirou os óculos de sol da cara e soltou o bordão de antanho que grudou até hoje no imaginário de toda uma geração – alô, Nizan Guanaes:
“Sorria, você está na Bahia!”
Valhei-me, minha Nossa Senhora da Presepada, que o dedo da injúria desceu na velocidade do raio da silibrina e eu nem tinha meia hora naquelas bandas. Isso é o quê, senão carma?
Eu, então, tirado dos meus pensamentos que sempre empurravam o mergulho um pouco mais pra frente no tempo – preguiça da zorra de levantar e andar aqueles quilométricos 15 metros – apenas pude olhar pro trabalhador, com cara de não muitos amigos.
Fez-se silêncio por uns 2 segundos. Aquela troca de olhares de Velho Oeste. Bolas de feno rolando na areia da praia do Porto da Barra. Ele percebendo a tática falha, se quase desculpa.
― Porra… Você é baiano, né, véi?
Respondo, fingindo uma quase indignação, me controlando para segurar o riso.
― Coé, mô pai?
Ele sorri o sorriso que não vem da propaganda, mas o autêntico, do escárnio de si mesmo, se despedindo.
― Bom dia aí, bróder!
Ele se adianta, dá as costas e resmunga, “gastei minha linha à toa”, e vai atrás de outro gringo, buscando a meta de vendas e o pão de cada dia. Sabe bem ele que com baiano nem adianta que não se cria depois da bola fora.
Aí já não era sem tempo, cheguei de postergar. Pus-me de pé. Sol de avermelhar brilhando impiedoso sobre nossas cabeças. Valente, rompi vitorioso as verdes, mornas e mansas águas do Porto da Barra. Deixei-me levar por um tempo pelo gingado dengoso da maré quase parada. Então olhei pra cima, desafiante. Nem venha, universo, que a proteção das águas sagradas do mar baiano faz com que não grude platitudes no meu couro de teflon.
Foda, meu pivete. Transformou uma situação corriqueira num bom texto. Parabéns!
Valeu, pae!