Há um divisor de águas na escrita de crônica esportiva no Brasil. Facilmente podemos dividi-la em antes e depois de Nelson Rodrigues. O pernambucano, expoente nacional em tudo a que se propôs, expandiu a batalha pela profissionalização dos cronistas esportivos iniciado por seu irmão, Mario Filho. Até então, escrever sobre futebol era considerado algo menor na literatura.
Nelson levou para as páginas do impresso o texto que se somava em fantasia e magia à mera imaginação que a era do rádio provocava. Em um período carente de imagens, a narrativa do rádio tinha que ser envolvente. Quisesse você ver os bambas em campo, ou ia ao estádio ou via nas preliminares do blockbuster o cinematográfico Canal 100 e sua exaltação dos geraldinos do Maracanã. Assim, apesar de Fluminense assumido, Nelson Rodrigues foi observador oficial do futebol carioca por anos, aceito por todos.
A televisão mudou significativamente a maneira de se acompanhar o futebol. A existência das imagens reduzia o alcance imaginativo das palavras. Mais restritos em desenho do que achamos que poderia ser, passamos todos a nos limitar ao que se via. Quanto mais instantânea a imagem, maior o foco em dissecar o tático em mesas redondas infindáveis, enfadonhas e que buscavam exaltar ânimos com polêmicas vazias. Era a vitória de virada do estômago sobre o cérebro.
Na contramão deste processo muitos tentam manter viva a essência da crônica esportiva. Com textos opinativos mas isentos. Tostão busca isso nacionalmente. Aqui na Bahia, Paulo Leandro, com seu estilo filosófico-nagô, esbanja beleza em suas linhas.
E se já não temos mais Carlos Drummond de Andrade e Armando Nogueira entre nós, este último um entusiasta do futebol-arte das palavras, o rádio baiano foi morada de uma das maiores figuras da crônica esportiva nacional: Armando Oliveira.
Na sua prudente coragem – prudente na escolha das palavras, coragem para dizer o que precisava ser dito, desagradasse a quem fosse – Armando era um filósofo do futebol.
Nos meus anos de formação, quando o mundo começava a se abrir para mim em sua plenitude, era a voz de Armando Oliveira que eu ouvia nas ondas da Rádio Sociedade da Bahia. Rubro-negro recém fanático, eu me encantava com suas inserções sempre precisas, sensatas, incorruptíveis. Na cabine que por muitos anos dividiu com Djalma Costa Lino e Sílvio Mendes e mais outros, sem saber, ele me impedia de migrar para o humor barato ou para as análises inconsequentes das concorrentes.
Na sua prudente coragem – prudente na escolha das palavras, coragem para dizer o que precisava ser dito, desagradasse a quem fosse – Armando era um filósofo do futebol. Entendia como poucos a essência do esporte e a ligava ao que significava para a Bahia, sem cair em bairrismo vazio. Esta visão ampla o credenciava a ser cronista em outras searas. E em uma aparentemente dissonância, unia construções complexas a uma estrutura de palavras simples e de fácil compreensão.
Em sua carreira, Armando Oliveira não se rendeu à televisão em transmissões esportivas. Manteve-se fiel ao rádio e à Rádio Sociedade, sua casa por décadas. Acreditava na soberania da imaginação e estava convicto que sua postura destemida seria limada pelos tantos interesses que cercam a telinha. Ao mesmo tempo, escreveu para quase todos os grandes veículos da mídia impressa baiana. Adicionalmente, esteve por muitos anos na bancada do Cartão Verde da TVE, outro instrumento formador de toda uma geração de jornalistas na Bahia.
Sua influência é inegável e não pode ser mensurada objetivamente. Sua elegância é até hoje inigualável.
Ontem, 5 de maio, Armando Oliveira completaria 83 anos. Nos deixou cedo demais e assim é com os grandes: suas partidas parecem sempre ser precoces. No panteão da história, sua abrangência regional não diminui sua importância nem sua genialidade. Armando Oliveira é o nosso Nelson Rodrigues. Talvez até maior.
Gabriel Galo é escritor e não seria se não fosse também por Armando Oliveira.
Artigo publicado na página 2 e no site do Correio* em 06 de maio de 2019. Link AQUI!
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