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Tudo bem

Tudo bem

tudo bem, amizade,

Encontraram-se depois de muitos anos. O que não quer dizer que não tenham se visto. Não era esse o caso. Encontraram-se no sentido de que era impossível ignorar a presença do outro. Era, pois, uma armadilha do destino, que chamou os 2 na sala da diretoria e os obrigava a interagirem.

A primeira frase saiu doída.

– E aí, tudo bem?

Pergunta estúpida. Óbvio que não estava tudo bem. Não haveria de estar. Os 2 ali em sofrimento por causa da palavra que seria melhor não falada, no olhar que não se cruzasse. Viviam ambos felizes, cada um a seu modo, cada qual em seu canto, torcendo para não haver coincidências que os colocassem dividindo o mesmo ambiente.

E por aqueles muitos anos, assim se fez. Contato nenhum, para alívio de todos no começo, e indiferença na medida que o tempo avançava.

– Tudo bem.

Não teve um “e você?”. Não teve rebote. Na disputa pelo terreno da teimosia maior, empunhavam armas e vestiam-se de armaduras.

Deram-se as costas, distribuindo bananas ao destino. Não seriam assim tão facilmente enganados.

***

Anos mais tarde, trombaram-se sem querer na rua em certo acontecimento que toma as vias da cidade. Inertes, um olhava para os prédios, o outro para as mulheres que passavam, seguindo em passos até o choque acidental.

Sem nem ver de quem se tratava, um solta:

– Ô, meu amigo, me perdoe! Estava distraído e…

Ao ver quem era, engoliu as palavras. “Meu amigo é o caralho”, pensou.

O outro apenas fez cara de desdém, virando os olhos em desacordo com a vida e mais aquela armadilha, e respondeu secamente, se aprumando para seguir aqueles tantos pares de pernas que por um segundo foram segundo plano imerecidamente.

– Tudo bem.

***

Sabe-se lá quantas primaveras se desabrocharam em flor, mas havia tempo que não se viam. Calhou de que pessoa tal era amiga em comum, sem que se soubesse das conexões desnecessárias. Num barzinho nalgum canto da cidade dividiram mesa no aniversário do elo.

O clima do contexto amenizou as rusgas. Se não era agora fisicamente possível ignorar a presença do outro, que ao menos não se alterasse o bom humor em nome da pessoa em festa.

Interações só de maneira indireta. Um fazia uma pergunta, pessoa qualquer respondia, o outro pulava para esticar a conversa. Nunca um ao outro, mas com intermediários, papo fazendo curva. Melhor assim.

Até que um deles fez uma piada. E o outro riu.

Riu sem considerar o interlocutor. Veja que despautério!

O um se fechou.

Não aceitava o rompimento da regra do que parecia uma vida inteira. Não se aceitavam espontaneidades naquela relação. O distanciamento era intransponível, registrado em contrato e em cartório. Não era permitido se desarmar para que houvesse brecha qualquer. Não e não! Fraco! Covarde!

Já nem lembrava mais da piada. Vá rir da piada de outro, cão!

***

Cutucou a esposa ao lado.

– Vamos embora?

Ela, sabedora minuciosa das aflições do companheiro, percebeu o desassossego e assentiu. Despediu-se ele de todos, menos do outro.

No carro, diante do silêncio desconfortável, ela tentava compreender a situação.

– Amor, aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?

E ele, atordoado com o amargo que sentia pela simpatia que por um átimo deu oi na grande amizade que um dia fora, pôde apenas procurar meios de lidar com a breve realidade. Certo era que viveriam felizes para quase sempre, voltariam para o aconchego do lar, terra onde tudo está sob controle e tem seu lugar.

Esboçou um sorriso, deu as mãos à mulher, e em meio a uma piscadinha, disse aquilo que aprendeu ser a única resposta possível ao incômodo que quer ser visto longe.

– Tudo bem.

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