A torcida única surgiu como ação emergencial para casos extremos. Só que o que deveria ser pontual, virou regra, e a Bahia não é honrosa exceção.
[A adoção da torcida única sempre foi pontual – e necessária – mundo afora. Vinha para interromper a escalada da violência, e serviu positivamente a este propósito. Mas ao contrário do Brasil, buscou-se maneiras de lidar com as causas dos problemas, sendo posteriormente abandonadas pela falta de necessidade.]
Numa sociedade que se enclausura em bolhas de afinidades, e vai escalando radicalismos na convivência social, a torcida única é um desserviço. Estamos desaprendendo a aceitar, interagir e conviver com o oposto. A mensagem que fica é a de que o torcedor adversário não deve estar no mesmo espaço que eu, é elemento a ser eliminado.
Quando o castigo e a exclusão são desejados, chega-se ao limite da recuperação do controle sobre si a partir da diminuição do outro. E, com isso, a violência se espalha, muito além dos limites do estádio de futebol.
[Um dos fatores que leva à escalada do justiçamento é a impunidade. Além disso, num ambiente em que direitos fundamentais são constantemente atacados, a violência como mecanismo de interação é natural. E o castigo se manifesta de diversas maneiras. Desde o jogador penalizado por comemorar um gol com a sua torcida até uma parte da torcida do Bahia que diz que a torcida única é o caminho “porque o Barradão não oferece condições”, numa espécie de castigo como justificativa ao isolamento.]
Apesar das comprovações de que a torcida única, no longo prazo, tende a ser contraproducente, MPs e Secretarias de Segurança Pública tomaram para si a medida como argumento exclusivamente moral. É o caminho fácil, nem precisa pensar muito.
Mas ao abdicar de prestar serviços dentro da finalidade que lhes compete, os órgãos assinam, vejam bem, um atestado quase formal de incapacidade.
Temos, pois, o encontro da incivilidade com a preguiça e a incompetência. Torcida única é a irracionalidade e a irresponsabilidade levadas às últimas consequências, para satisfação de ególatras que se escondem nas dificuldades para não escancarar o vazio de suas capacidades.
Lembremos Nietzsche: o castigo foi feito para melhorar aquele que o aplica. Como disse Einstein, é lastimável a condição dos homens que têm de ser domados pelo medo do castigo.
A torcida única é uma aberração que deturpa o que é a essência do futebol. Um jogo sem torcida oposta se despe de alma e se veste de ignorância. Deixa de ser espetáculo para se tornar abuso de autoridade. Seu fim é necessário. Não que seja simples ou fácil. Mas qualquer conversa minimamente bem-intencionada deve convergir à sua extinção.
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