Vou começar esta reflexão sobre o estatuto dos povos indígenas no Brasil abordando o fato que a motivou: a declaração de uma autoridade da República, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, que a formulou numa reunião ministerial acontecida no dia 22 de abril próximo-passado e dada a público pouco depois, por determinação judicial. A reunião causou escândalo pela manifesta falta de decoro do presidente e de alguns ministros, que se valeram de palavreado chulo, de grosserias e injúrias. Não faltaram disparates nessa escabrosa conferência. O Ministro da Educação sobressaiu-se com uma insana declaração de ódio. Disse que odeia a China (portanto quase um quinto da humanidade) e o termo “povos indígenas”. Não explicou os motivos de sua sanha sinófoba, nem apresentou qualquer argumento que justificasse seu horror à expressão por ele abominada.
O ministro não costuma argumentar. É notória a dificuldade que sente para exprimir-se de forma clara, falando ou escrevendo. Compor um discurso articulado não está entre suas habilidades. Muito menos fazer um arrazoado aceitável, logicamente estruturado. O único fundamento que apresentou para seu repúdio à expressão “povos indígenas” foi uma afirmativa seca: a seu ver, não cabe falar assim porque aqui “só tem um povo, o brasileiro”. Não se deu ao trabalho de esclarecer o que dizia, fundamentando sua tese. Não achou necessário demonstrar-lhe a validade. A problemática que sua declaração envolve foi simplesmente ignorada por ele, descartada in limine.
O vazio lógico de sua arenga denuncia um tenaz obscurantismo. O ministro Weintraub já tornou patente por outras declarações infelizes seu menosprezo pelas ciências sociais, pela filosofia, pelas humanidades em geral. Sua irritação com essas disciplinas que considera inúteis revelam mais que um aborrecimento, traduzem uma incompreensão aparentemente insanável. Dá-se hoje em nosso país uma situação bizarra, singular e quase inacreditável: temos o Ministério da Educação entregue aos cuidados de um homem que despreza um campo de conhecimento de máxima importância para quem lida com educação, um homem que rejeita e aborrece disciplinas absolutamente indispensáveis ao embasamento de uma política educacional. Conviria saber em que ele se baseia para pronunciar-se sobre o conceito de povos indígenas, assunto que requer exame à luz da antropologia, das ciências sociais. Se despreza essas disciplinas, em que se funda o ministro para emitir juízos a propósito da expressão “povos indígenas” e do conceito correspondente? Ele não se explicou nem se explica. Mas é imperativo levantar as questões que ele evitou. Não para convencê-lo: não há argumentação lógica capaz de persuadir quem se estriba no ódio e na autossuficiência. Torna-se necessário empreender essa discussão a fim de enfrentar os embaraços causados pelo desgoverno de que ele participa de forma particularmente perversa.
A colocação de Abraham Weintraub nada tem de original. Para desgraça de milhões de homens e mulheres, já se enunciou semelhante dogma na Alemanha nazista, por exemplo. Com a ascensão do nazismo não se podia mais ser alemão e judeu, ou judeu e ainda assim austríaco. Também na Itália dominada pelo fascismo ser italiano e judeu tornou-se impossível. Um só povo, uma só nação, sob a regência do mesmo Estado: essa era a regra. Ainda hoje na Europa, na América e alhures antissemitas renitentes brandem o anátema: quem quiser ser judeu que vá para Israel, aqui deve ficar apenas “nosso povo”. Infelizmente ainda existe quem pense assim, quem não admita que se fale de povo judeu na terra que reivindica para sua grei e ninguém mais.
O ministro Weintraub devia saber disso pois é judeu, ainda que suas declarações abstrusas frequentemente provoquem vexame, lástima e repúdio na comunidade judaica. Esta comunidade é muito importante para o Brasil, contribui para a grandeza de nosso país, encerra brasileiros dignos de toda o respeito e consideração, que não precisam deixar de ser judeus para ser brasileiros. Grande parte do povo de Israel vive fora do Estado chamado Israel. Não faz o menor sentido exigir dos hebreus estabelecidos em outros países que deixem de considerar-se povo hebreu, ou povo de Israel. Não faz sentido cobrar-lhes que se dissolvam nas nacionalidades por eles assumidas por adoção ou por nascimento, pela vivência, pelo amor, por seus muitos méritos. A proclamação de tal imperativo resultou num genocídio pavoroso.
A valorização das diferenças é indispensável à verdadeira união. Um Brasil uniforme, de todo homogêneo, caso existisse, caso pudesse ser pensado, seria uma triste aberração. O verdadeiro problema que nos desafia não reside no fato de que temos aqui um belo mosaico de povos. Está na desigualdade que nos puxa para baixo, mutila nossa economia, compromete nossa existência, vicia nossa república. Está no racismo que nos rebaixa e envenena, que prolonga a opressão de milhões de brasileiros sujeitos a condições de vida deploráveis, a violência crônica, a humilhação e injustiça social despudorada.
Caso estivesse interessado em fundamentar sua declaração, o ministro Weintraub teria de esclarecer quem são esses indígenas a quem ele nega a condição de povos. Mas se lhe fizessem essa pergunta ele provavelmente não responderia. Por falta de conhecimento, sem dúvida, mas também por achar desnecessário perder tempo com o assunto. O ódio lhe basta. Poupa-lhe o esforço de pensar, de envolver-se com coisas que considera supérfluas, como antropologia, história, ciência política, sociologia.
Ainda assim a questão se impõe. Busquemos a resposta que seu silêncio encobre. Sim, nós a podemos encontrar, senão em sua fala, no círculo de seus interlocutores. O Presidente da República com quem Abraham Weintraub comunga ideias, valores e interesses tornou patente seu pensamento sobre o assunto, sem dúvida matéria de consenso em seu meio. Não há muito, num breve comentário, Bolsonaro mostrou com toda a clareza o que pensa a respeito dos indígenas deste país. No tom de quem faz um grande elogio, disse ele numa live que “o índio está evoluindo, está se tornando cada vez mais um ser humano igual a nós” e portanto “deve integrar-se ao restante da sociedade brasileira”. Em suma, para o chefe do executivo nacional e os que comungam de sua ideologia os indígenas não são humanos nem brasileiros. Enquanto permanecerem indígenas, não podem ser nem uma coisa nem outra.
Impossível negar o sentido profundamente racista desta proposição. Aí está a expressão mais crua do desconhecimento em que se estriba a política do atual governo da república, no que toca ao indigenato. A afirmativa do ministro da educação embora pareça inclusiva, parte na verdade de um gesto de exclusão.
Para que se tornem humanos, “gente como nós” e finalmente brasileiros, que devem fazer os índios? A resposta que se encontra no mesmo campo ideológico é bem clara: uma grande renúncia. É o que pensam, dizem e praticam os seguidores do presidente. A seu ver, impõe-se que os chamados índios abandonem seu modo de vida, suas tradições, seus costumes, seus valores, suas identidades, em suma, e assim abdiquem de um direito fundamental, a eles reconhecido pela Constituição da República Federativa do Brasil. Aí está a raiz do problema, o verdadeiro fundamento da tese de Weintraub, o desiderato que alimenta seu ódio. Pretende-se que os indígenas renunciem ao usufruto coletivo de suas terras. Já quem fala em povos indígenas reconhece-lhes esse direito tão combatido no Brasil, hoje mais do que nunca negado e abominado na mais alta instância de governo.
Aí está o ideal dos governantes que hoje temos, o sonho dourado dos setores que lhes dão sustentação. Querem que as terras indígenas sejam franqueadas amplamente a quem deseje explorá-las de toda a forma. Com falsa candidez, às vezes alegam que os índios têm o direito de fazê-lo também, competindo com latifundiários, mineradoras, madeireiros e outros, como eles se pudessem entrar em pé de igualdade na disputa pelo que no fim das contas lhes pertence de direito, mas grupos armados e poderosos buscam arrebatar-lhes com violência. Sendo essa competição evidentemente impossível, presume-se que aos indígenas resta desaparecer. Mas se eles teimam em existir e continuar sendo quem são, de posse das terras cujo usufruto a Constituição lhes garante, não faltará, nunca falta, quem se empenhe em removê-los, melhor dizendo eliminá-los em nome do progresso. Esse projeto de aniquilação é a verdadeira fonte da retórica dos weintraubs, empenhados de forma ridícula em negar a evidência da diversidade étnica do Brasil, fazer com que se esqueça a existência no país de habitantes cujos ancestres já se achavam aqui estabelecidos muito antes da chegada dos colonizadores europeus. Que proveito se pode tirar do seu apagamento? Como categorizar essa gente, ou melhor, essas gentes?
Reconheçamos que o rótulo “índios” os caracteriza mal. Procede de um engano de Colombo e é tão vazio quanto a expressão “negros da terra” que lhes aplicaram os colonizadores portugueses a fim de diferenciá-los dos homens e mulheres que escravizavam na África e traziam para cá, também eles e elas pertencentes a distintas etnias, a diferentes povos. Mas deu-se que os rótulos vazios com que os designaram foram preenchidos de modo positivo tanto pelos negros como pelos chamados indígenas. Dando-se conta de sua comum condição na sociedade escravista, os negros oriundos de distintas sociedades africanas, portadores de diferentes culturas, criaram laços e formaram alianças entre si, estabeleceram uma espécie de comunhhão transcultural no curso de sua resistência à opressão, nas suas lutas por liberdade, e com muita inteligência deram novo sentido político à categoria em que os situavam os escravizadores. Assim o que era apenas uma marca superficial indicativa de mão de obra servil, um diacrítico definido pelos senhores brancos com base em um simples fenótipo, tornou-se um signo identitário assumido e valorizado: os africanos e crioulos escravizados produziram de forma criativa sua negritude, conferindo-lhe um valor positivo. No processo, fizeram de suas diferenças um tesouro comum. A reação à violência colonial na África negra suscitou também uma valoração dessa ordem, fruto do empenho de grandes líderes e de segmentos importantes de distintas sociedades negroafricanas, que assim deram origem ao movimento pan-africanista, movimento cuja irradiação na diáspora gerou (tem gerado) excelentes frutos. Processo similar verificou-se com descendentes de populações pré-colombianas, em nosso caso pré-cabralinas. Sem deixar de lado as tradições, os costumes, os modos de vida que os diferenciam, os protoamericanos têm-se mostrado capazes de irmanar-se e constituir uma rica aliança, associando-se e apoiando-se mutuamente. O magnífico resultado deste processo foi a criação de uma sinergia política e de uma nova forma de interlocução entre grupos e culturas, um belo invento digno de respeito e admiração. O rótulo “indígena” foi apropriado positivamente, dotado de um sentido novo e muito rico. Houve não só um salto semântico: deu-se a gênese de um campo cultural frutífero, generoso, muito promissor. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil é motivo de orgulho para todos os cidadãos deste país e evidentemente não representa qualquer ameaça ao Estado brasileiro, como tampouco a União das Nações Indígenas que a precedeu e cujo nome tanto irritava o General Golbery do Couto e Silva. Ora, convém lembrar que por muito tempo, desde a colônia, os governantes não apenas se empenhavam aqui em classificar os negros escravizados em “nações” como também se referiam em textos oficiais a nações indígenas do Brasil. Depois quis-se banir essa designação. A birra nova não passa de pretexto industriado com má fé e usado perversamente por quem tenta inibir uma justa demanda, uma ligação solidária, uma união eficaz para defesa e reivindicação de direitos por parte de populações ameaçadas pela cobiça infrene de segmentos muito poderosos tanto econômica quanto politicamente.
Não há motivo algum para que se deixe de falar em povos indígenas e se desconheça sua existência no Brasil. Não nos prejudica nem nos diminui o fato de sermos um país multiétnico. Daí não nos vem nenhum perigo. Pelo contrário, o risco muito sério nos chega de outro lado: do acirramento do racismo e da sanha ditatorial de grupos que conspiram contra a nossa liberdade e dilapidam o patrimônio ambiental do país.
Há uma hipocrisia muito grande no proclamado temor à afirmação dos nossos povos indígenas, como se eles constituíssem ameaça à unidade nacional. Uma mineradora norueguesa promove intensa devastação na Amazônia. Nossos governantes não reclamam. Outras empresas estrangeiras do mesmo tipo projetam instalar-se na grande hileia, apossando-se de vastas extensões de terras. Não ocorre nenhum protesto patriótico, nenhuma reclamação da parte dos supostos defensores do Brasil, que pelo contrário estimulam a ganância dos ádvenas poderosos e se dispõem a ceder-lhes tudo. Não veem nisso nada de lesivo ao país. Mas falar em povos indígenas, reconhecê-los como tais, acatar seu protagonismo na defesa de seus direitos é o pecado, é o que se descreve como grande ameaça, a provocar explosões de ódio.
O ideal de um povo único e homogêneo tem servido historicamente de cobertura para programas violentos de dominação que não raro degeneram em genocídio. Serve também para disfarçar a brutalidade racista. Faz-se útil, sobretudo, para esconder a concentração imoral de poder e riqueza em mãos de poucos, como se a imaginária eliminação de diferenças étnicas pudesse representar (ou substituir) o fim das desigualdades, mesmo as mais escandalosas.
Quem propõe esse ideal parte de um pressuposto que não aceita discutir, pois seu acatamento depende de mantê-lo fora do alcance da crítica. Como diz o filósofo e economista Amartya Sen1, “muitos dos conflitos e da barbárie existentes no mundo são sustentados pela ilusão de uma identidade única e sem alternativa.”
Claro está que se pode perfeitamente ser caiapó e brasileiro, judeu e brasileiro etc. Os povos indígenas nos enriquecem com o tesouro de suas criações culturais e seu profundo amor à liberdade. Dão-nos lições preciosas também no campo da política. Senti-me fascinado pela ecumene xinguana quando a visitei e estudei como antropólogo, numa breve temporada de pesquisa na qual aprendi muito. É um avanço em civilização o que lá se verifica: a convivência na bacia dos formadores do rio Xingu de indígenas de diferentes culturas, de sociedades que falam diversas línguas e se entendem perfeitamente, pois souberam estabelecer um convívio pacífico esquecendo antigas hostilidades e produziram, sem perder as características que as singularizam, uma cultura comum, cada vez mais rica. A devastação ora em curso do belo nicho ecológico que os xinguanos durante séculos mantiveram em seu esplendor, respeitando e cultivando floresta e savana, ameaça um patrimônio da humanidade. Esta ameaça impende sobre toda hileia amazônica e outros biomas protegidos por nossos indígenas. O reconhecimento dos direitos desses povos é de importância vital para todos os brasileiros. Os ataques que eles sofrem nos atingem a todos. A chacina dos povos da floresta e do cerrado tem consequências terríveis. Muitos brasileiros que residem em centros urbanos, aparentemente muito longe dos índios, precisam dar-se conta de quanto são prejudicados por essa brutalidade: não percebem que o desmatamento promovido pelos agressores dos povos indígenas afeta a população de grandes metrópoles do sudeste e do centro-oeste, por exemplo; não veem que a desertificação do cerrado e a extinção de florestas acarretará sede e fome para multidões que, de norte a sul do Brasil, se imaginam alheias a esse drama. A indiferença em face da chacina dos índios não é só imoral, é também suicida.
Vale repetir: povos indígenas não significam risco nenhum para o Brasil. O risco está do outro lado, vem daqueles que os ameaçam, agridem, esbulham e massacram. O desmonte da Fundação Nacional do Índio e o profundo descaso das autoridades em face dos repetidos crimes cometidos contra esses povos, entregues ao furor de assassinos e ao contágio de uma sinistra pandemia sem as defesas a que fazem jus são pura e simplesmente crimes conta a humanidade. Também merecem qualificar-se assim a projetada abertura de suas terras à mineração, o encorajamento do garimpo ilegal nas suas reservas e, entre outras medidas infames, a obscena MP da grilagem, que legaliza o crime contra um patrimônio nacional cuja perda tem o efeito de lesar todos os brasileiros, inclusive as gerações futuras.
Os povos indígenas nos dão alegria e orgulho, valorizam nossa república. Não temos a temer barbárie da parte deles, mas sim de quem prega o ódio, amesquinha a educação e cultiva a xenofobia.
Entrevista publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #3.
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