Por Durval Lucas Jr.
São 30 segundos num vídeo de quase 2 horas. Parece pouco, diante do conjunto da obra, mas nesse meio minuto em que o (então) Ministro da Educação vocifera seu ódio contra expressões alusivas a diferentes povos dentro do Brasil –e aos supostos privilégios que possuem sobre o conjunto da sociedade–, temos uma amostra de como pensa uma parcela da população brasileira sobre si mesma.
Por mais doloroso que seja, precisamos destacar que Abraham Weintraub representa uma parcela expressiva da sociedade. Expressiva não pelo número em si, mas por estar presente em nossas famílias, locais de trabalho ou grupos de amigos. Considerando que (na maioria dos casos) são pessoas por nós queridas, a hipótese de se livrar, pura e simplesmente, do convívio com essas pessoas está descartada.
Por isso, o conselho do Papa Francisco faz todo sentido: é necessário construir pontes, em vez de muros. Pontes verdadeiras, que permitam o fluxo vindo das duas margens, e não somente aquelas que buscam “resgatar almas perdidas no vale da escuridão”. Pontes que representem abertura franca ao diálogo e à compreensão, e que nos unam como seres diversos que somos.
Diante dessa contextualização, segue meu convite: tentarmos juntos entender o que se passa na cabeça do Weintraub e de tantas outras pessoas. O que fundamenta seus raciocínios, para que digam essas coisas sem qualquer constrangimento. Não se trata de nos colocarmos como seres superiores, que têm a solução para todos os problemas da humanidade, mas como seres iguais, realmente preocupados com nossos semelhantes e com o nosso país. Há uma aflição sendo intrinsecamente demonstrada, a cada palavra dura ou gesto rude, que precisa da nossa audição ativa, da nossa melhor compreensão possível, e da busca por soluções realmente integradoras.
Não sou psicólogo (nem pretendo sê-lo!), mas sou um dos vários incomodados com a polarização que tomou conta do debate político-institucional no nosso país. Considerando que a hipótese de um lado ser absorvido ou vencido pelo outro acabará de uma vez por todas com nossa frágil democracia, não temos alternativa senão a conciliação. O tão difícil, mas necessário, caminho do meio.
Voltando aos 30 segundos perturbadores, um dos pontos mais críticos do discurso foi o que associou “povos” a “privilégios”. Trata-se claramente de uma interpretação equivocada sobre a defesa da igualdade social. Mesmo assim, uma declaração cheia de significado para quem tem ouvidos atentos: critica a perenidade do que deveria ser provisório, e aponta disfunções e ineficiências em políticas públicas construídas ao longo das últimas décadas.
No âmago da nossa convicção de estarmos do “lado certo da ponte”, acabamos não refletindo sobre o destino que este caminho pode nos levar, e considerando as eventuais críticas como puras demonstrações de intolerância. A verdade é que temos falhado sistematicamente como sociedade na luta pelo fim da desigualdade. Como consequência, nosso país não só tem permanecido desigual, como também está caminhando para ser segmentado e conflituoso.
A discussão sobre políticas públicas no Brasil tem que sair do campo da militância e entrar na avaliação crítica de sua execução.
Menos cartazes e mais métricas. É fácil, bonito e politicamente correto dizer que todos somos preocupados com a educação. Difícil, porém, é se comprometer com a reunião de pais, com o dever de casa da criança, ou com a reforma da escola do bairro.
Há cerca de 20 anos, o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu universalizar o acesso ao ensino básico no Brasil. Se, desde aquela época, tivéssemos realmente nos comprometido com a qualidade da educação, sem proselitismos e com métricas claras sendo arduamente perseguidas, já estaríamos formando as primeiras gerações de estudantes com melhores níveis de desempenho. Pessoas que poderiam disputar uma vaga na universidade sem a necessidade de cotas, ou mesmo conseguir qualquer emprego que quisessem. Talvez estivéssemos discutindo menos o racismo, porque oportunidades estariam sendo abertas para pessoas de todas as cores e origens sociais.
Naturalmente, haverá quem diga que a responsabilidade é dos políticos, que não fazem nada e ainda por cima levam parte do dinheiro. Só que eles estão lá porque votamos neles, porque não fomos votar, ou simplesmente porque nos abstivemos votando nulo ou branco. Cada um com sua parcela de culpa. Todos culpados pela nossa própria incompetência como sociedade.
É justamente nessa busca por culpados para nossas mazelas que se encaixa o raciocínio externado pelo Ministro: se era para termos menos pobres, e não o contrário; se era para termos menos desigualdade, e não o contrário, a culpa é de quem teve a chance de fazer e não o fez. A culpa é deles, e não nossa. É claro que esse raciocínio é simplista, mas é exatamente por isso que viraliza: numa sociedade de analfabetos funcionais como a nossa, não é fácil se ver como uma pessoa que trabalha duro para conseguir as coisas, enquanto outra reclama que “está com mais de oito anos que eu recebo o Bolsa Família. Não tá dando pra comprar nem uma calça pra minha filha. Porque uma calça para uma jovem de 16 anos é mais de 300 reais”. E daí surge a visão equivocada que políticas de redução da desigualdade viraram privilégios.
As disfunções da política brasileira fizeram com que soluções paliativas ganhassem status de permanentes, perpetuando as desigualdades e desincentivando o debate público.
Escolhemos sempre os atalhos perigosos, em detrimento do caminho mais longo, porém seguro. Exemplo disso é que o sucesso do Bolsa Família passou a ser medido não pelo número de pessoas que conseguem sair do sistema, mas pelo número de novas famílias que entram. Pensar no fim do programa é suicídio político ou sinal de insensibilidade. Tudo isso porque achamos que a mera transferência de renda seria suficiente, e relaxamos quanto a tudo o que realmente importa.
O duro impacto das palavras ministeriais deveria se converter em momento de séria reflexão sobre o sucesso das políticas públicas brasileiras. Ele próprio – se tivesse se dado conta da magnitude de seus pensamentos, e tivesse um perfil mais conciliador – poderia assumir o papel de liderança realizadora que nosso país precisa. De qualquer forma, acredito que o primeiro passo foi dado, e o método criado – ouvir, refletir, discutir e agir – pode ser aplicado nos discursos de todas essas pessoas consideradas radicais. Quanto mais praticarmos, maiores as chances de encontrarmos o caminho do meio, salvarmos o país e a nós mesmos.
Entrevista publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #3.
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