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_Entrevista: GOLI GUERREIRO

_Entrevista: GOLI GUERREIRO

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Goli Guerreiro é soteropolitana, antropóloga, e se dedico a pensar as culturas negras no mundo atlântico em diversos formatos. Dona de uma energia contagiante, ela conversou comigo no dia 15 de junho e explanou suas visões sobre a formação de povos no Brasil.


A primeira coisa que me vem na cabeça quando se pensa em povo é heterogeneidade e hibridações. Um povo, desde o começo dos tempos, se constitui de fragmentos de diversos elementos numa eterna migração. Então são encaixes e possibilidades de gestos, modos, práticas, saberes, linguagens, cosmologias. Quer dizer, um povo implica, necessariamente, multiplicidade. É impossível você constituir um jeito de ser e estar no mundo sem que isso implique diversas combinações, diversas contradições, então heterogeneidade e hibridações é uma forma de definir o que é um povo.

E, no caso do povo brasileiro, a gente está falando de uma incrível heterogeneidade. A gente está falando de centenas de etnias indígenas, dezenas de etnias africanas, etnias europeias e um colonizador português já extremamente arabizado, com 700 anos de encontros, vivências e tensões com o mundo árabe. Então o Brasil ele tem essa característica de ter uma incrível miscelânea, uma composição altamente sincrética, inclusive os ciganos que começam a chegar aqui no século dezesseis. A gente tem oriente, África, Europa, Américas e essa tamanha riqueza e diversidade cultural. Trata-se de um povo altamente cosmopolita, com 500 anos de encontros, mesclas, tensões, conflitos, entre modos de estar e de ser no mundo que foram se processando, de um modo sempre muito dinâmico. A cultura tem essa característica. O povo é uma cultura que é formada por tantos elementos… O mais incrível de estudar cultura é exatamente isso, é porque são todas as dimensões de realidade. Tudo está em nós. mesmo que a gente não tenha a mínima consciência, mesmo que a gente não tenha conhecimento suficiente pra entender essas nuances que vão se manifestar.

Um povo é isso, é essa habilidade de articular, de arrumar,  de  fazer  um  arranjo  de   todas  as possibilidades culturais em termos de gestos, modos, linguagens, religiosidades, gastronomias, e mais. Foi assim que que a gente se tornou ser humano, nessa caminhada.


Goli, você comentou bastante de cultura. Você pode agrupar as pessoas como povo de acordo com similaridades de cultura, mas é claro, é uma cultura que evolui, que se desenvolve, mas você não mencionou em nenhum momento geografia. Hoje em dia tem-se disseminada a ideia de que povo está mais atrelado ao conceito de nação, que ao conceito de cultura. Por que isso ocorre, por que esse embaralhamento de geografia sobre a geografia está tão disseminado atualmente?

Uma coisa que está na história humana é a migração. Então o processo cultural é claro que está ligado ao espaço geográfico, certamente, mas ele também vai encontrando muitas outras possibilidades de estar naquele espaço geográfico e ele vai se movendo. A ideia de deslocamento é muito importante pra gente pensar a cultura. Então quando a gente pensa, por exemplo, como as dezenas de etnias africanas forjaram esse cosmopolitismo africano no Brasil, vemos que é uma coisa muito rara. Se você for pensar só no Recôncavo Baiano, a quantidade de povos africanos reunidos nesse espaço geográfico, cultural e simbólico, é monumental. Isso é resultado de uma migração que começa lá no continente africano e que atravessa o atlântico, chega nas Américas e vai encontrar o mundo indígena super variado e heterogêneo, mais ciganos, judeus —que se converteram em cristãos novos, mas que mantinham suas práticas—, então há esse cosmopolitismo que se estabelece num determinado espaço geográfico, mas esse cosmopolitismo vai se estabelecer também em outros espaços.

Evidentemente que essa luz e esse sol todo que a gente tem na Bahia, tem uma importância fundamental no nosso de estar no mundo, mas é importante que a gente saiba que esse modo é resultado de traços culturais que se desenvolveram em diversos outros territórios do planeta.

A Cidade do Salvador, representada pelo pintor inglês Augustus Earle (1793-1838), que acompanhava a expedição do Beagle. No alto, vê-se o Theatro São João, que funcionou de 1812 a 1922, no local da atual praça Castro Alves. Embaixo, na parte central da imagem, estão as torres da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, inaugurada em 1765.

Entrando no tema da migração de povos africanos, que é a sua área de estudo. Desde o início, por conta do processo de escravização, esses povos, essas pessoas que eram extraídas efetivamente de seu convívio, de sua cultura, e eram trazidas a um território absolutamente desconhecido, sem nome, sem sobrenome, sem bandeira, tendo que se submeter a uma nova cultura, uma nova religião. Como se enfrenta esse conceito para manter vivo um sentimento de povo que se baseia numa cultura que foi tão despedaçada nesse processo de arrancamento de um lugar e trazendo para o Brasil?

Esse é o melhor da inteligência africana, da inteligência dos povos africanos. Como eles foram capazes de recriar, num contexto tão adverso, sua maneira de estar no mundo. É uma história muito forte de reconstrução de modos. E essa reconstrução passa justamente por esse encontro de dezenas de povos africanos que estiveram e estão aqui, do cosmopolitismo africano de que falávamos há pouco. Isso é fundamental pra entender essa negociação, porque são cabindas… geralmente se fala de bantos e sudaneses, mas dentro disso são dezenas de etnias e essas etnias tiveram contato com outras etnias em África e já vieram com formas altamente sincretizadas de cultuar deuses, de se alimentar… Então é um processo de invenção cultural de grande magnitude, como os africanos se reinventaram nas Américas, e no caso do Brasil mais ainda por conta da quantidade de pessoas envolvidas. Na passagem do século XVIII pro XIX eram milhares de africanos chegando aqui. E com noções de urbanidade altamente sofisticadas e com essa capacidade —porque os povos africanos chegaram ao Brasil com 5 mil anos de história. São povos antigos com muita experiência em arrumar estratégias e se rearrumar para seguir sobrevivendo diante de toda a hostilidade que o próprio contexto geográfico e cultural impunha. Então essa inteligência vai dar na invenção de uma religião. São poucos os momentos no mundo em que você vê nascer uma religião, como o candomblé foi inventado no Brasil. E olhe que se trata de deuses que estavam em áreas geográficas diferentes, porque, apesar da maior parte dos africanos que inventaram, e também brasileiros nascidos aqui, terem estado ligados à África Ocidental, mas a presença das referências bantos, dos inquinces, também estão muito presentes na construção dessa religião brasileira. Então isso é engenhoso demais, e certamente foi um caminho poderosíssimo de se manter íntegro, inteiro, apesar de toda violência no contexto brasileiro.

Você tocou no ponto da identidade. Quando você fala de povo, você está criando laços e referências pra se dizer onde você está, onde você se insere no mundo?

Eu tenho me afastado há um tempo dessa noção de identidade. Eu considero que uma noção inventada na Europa não serve pra gente pensar a nossa produção de sentidos, os nossos códigos culturais. Eu acho que essa noção de identidade ela surge para dizer que os brancos europeus são a referência, o padrão de humano e de civilidade, e pro outro a identidade surge pra organizar essa visão de mundo. Então eu acho muito bacana que a gente tente se afastar dela, pra tentar criar modelos de pensamento originais brasileiros.

Se falarmos de identidade negra, o que cabe dentro disso? Tudo e mais alguma coisa! Então acaba caindo num limbo, há um vazio nessa noção de identidade, e eu atribuo esse vazio a essa construção fora daqui, com interesse claramente racista, de supremacia de um povo sobre todos os outros. Então já faz algum tempo que eu abandonei essa noção de identidade, e sobretudo me desgosta muito que ela tenha se tornado uma fórmula para se pensar o mundo. Eu acho que isso é uma vitória do pensamento europeu.

A busca é encontrar formas de pensar brasileiras, originais.

A busca é encontrar formas de pensar brasileiras, originais, para que a gente consiga tentar dar conta dos nossos problemas, que são imensos, em relação a racismo, à desigualdade, à violência de gênero… A gente precisa realmente se voltar pra gente mesmo.

Por exemplo, as periferias estão vivendo uma produção de conhecimento em contato com os outros, uma coisa bem próxima, aprendendo juntos, trocando informações, pensando em formas de se manterem vivos. Na outra ponta, as camadas letradas, com acesso a conhecimento, que lhe permite pensar o mundo e tentar organizar uma resistência, também. E tem esse espaço do meio completamente ignorante, avesso às convivências com a diferença, sem nenhuma informação nem prática, de como vivem as pessoas no cotidiano das periferias do Brasil, e sem nenhum conhecimento também sobre uma produção acadêmica ou intelectual. Ou seja, temos uma imensa massa que se torna avessa à diferença, que pensa deve haver uma coisa só. Há muitos fossos no Brasil e isso dificulta muito uma construção de uma leitura de mundo original, pra que a gente possa avançar.

Sobre a periferia. Aqui em São Paulo, assim como na Bahia, se percebe que ela se dissocia do urbanismo central e cria a sua própria cultura, a sua própria música, o seu próprio sotaque, sua própria gíria. Isso é, de uma certa maneira, abandonar as identidades construídas e criar um novo povo, uma nova cultura a partir dessa mobilidade, dessas migrações, desse encontro de culturas e pensamento diversos, criando uma nova interação que é 100% autoral, que é só nossa?

Muito interessante isso que você está falando e acho que faz muito sentido. Tipo, ‘esse modelo aqui que vocês vendem como civilizado, não somos nós’. É uma reinvenção permanente que vai dar nessa riqueza cultural tremenda, coreográfica, literária, poética, estética, um ‘vamos dar um jeito, vamos inventar um arranjo cultural que seja coerente com a nossa existência’.

Eu gosto dessa sua leitura, de que a periferia está tramando um jeito que abandona esses modelos identitários, que na verdade não são construídos por eles, que alguém diz, ‘olha, sua identidade é essa aqui e você tem que se aliar a esse modelo para existir, é por aqui que você tem que se mover’ e não é bem assim que funciona.

A cultura tem essa coisa de ser uma criação muito dinâmica, que diz respeito ao próprio cotidiano das pessoas, e elas não estão interessadas em fórmulas ou modelos que alguém ou que alguma instancia superior vai ditar.

A dinâmica cultural não é um movimento linear. Ela tem muito mais a ver com o movimento de um cavalo no jogo de xadrez, como diz Lévi-Strauss. Isso é muito rico. A maneira linear de entender o tempo é uma construção do tempo.

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Pela sua fala, a ideia de povo é tão dinâmica e volátil que é, hoje em dia, dentro do acesso amplo à informação que temos, mais um movimento espontâneo do que uma definição acadêmica. Conceitualmente, atribuir uma ideia de povo brasileiro único não poderia ser mais falho, correto? Porque com tanto dinamismo, com tantas diferenças culturais, é impossível você uniformizar uma ideia de povo brasileiro.

É uma contradição em termos. Quando você está falando de povo, você está falando de multirreferências, você está falando de heterogeneidade, de diversidade.

Em cima de todo o histórico brasileiro, percebe-se uma tentativa de se forçar uma homogeneização de conceito de povo que reverbera um preconceito e realça as estruturas de poder que sempre existiram. A ideia de povo obedece à imagem que se quer ter como cultura, como civilização, como estética, como idioma, como religião, como cor da pele.

Com certeza essa afirmação [do agora ex-ministro Weintraub] está completamente carregada de ignorância. E isso é dramático, afinal, estamos falando do ministro da Educação. É chocante, porque é uma falta de conhecimento básico do que seja um povo, desse dinamismo que caracteriza essa ideia de povo, e até remete à ideia de democracia racial, sabe? É uma atualização dessa ideia que parecia já ter caído por terra.

Essa leitura de mundo é exatamente essa que está no limbo de que a gente estava falando. Ele [Weintraub] representa esse limbo de quem não tem uma experiência de vida rica, por mais escassa que seja em termos de materiais, e também não tem uma erudição que lhe permita articular uma frase, uma ideia coerente que se sustente minimamente. É uma tragédia. Temos que estimular o debate e pensamentos brasileiros.

Lélia Gonzalez, com o conceito de ‘amefricanidade’, nos anos 80 ela já estava falando nisso, que é uma maneira original de pensar a cultura brasileira, que se move dessas estruturas fechadas, delimitadoras. Essa hibridação que está dentro desse conceito, praticamente desprezado pela academia brasileira.

Lélia Gonzales
Lélia Gonzalez

55% de afrodescendência significa uma tamanha gama de matrizes africanas, de pensamentos, de formas, que contêm 5 mil anos de história da África. Isso é desprezado. E Lélia Gonzales vem com essa amálgama, você tem aí um vasto caminho pra desbravar e pensar o Brasil por outros caminhos.


Entrevista publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #3.

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Capa da terceira edição da Papo de Galo_ revista.

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