A perspectiva é de comparação. Em meio à infâmia de jogos modorrentos pelos gramados brasileiros, as quartas de final da Liga dos Campeões da Uefa. Em que se pese o fato de que lá, nos jogos únicos do calendário apertado pela pandemia, os melhores craques do mundo desfilam sua arte, mas não é para tanto. Porque ao olhar o que se pratica nos tapetes verdes da Europa, tem-se a certeza, perante o espanto, que aquilo, sim, é futebol.
Uma troca de passes com mais de cinco toques em sequência sem envolver os zagueiros. Cruzamentos na medida. Dribles que rompem defesas. Azarões batendo favoritos. Pernas de pau vivendo dia de herói, tidos heróis vivendo dia de vilão. Belos gols, gramados perfeitos, bola que corre sem tropicões, iluminação em que a noite é dia. Ângulos muitos. É, pois, espetáculo.
Criança-que-pode sai da TV e liga o videogame para escolher o time que acabou de testemunhar e vibrar com seus gols virtuais. São todos adulto Ney, Messi pistola, Robozão e De Bruninho. Os melhores estão lá, não cá. E o espetáculo vai instaurando afastamento das coisas de cá, num simulacro de torcida espalhada pelo mundo.
Corta para o Brasil.
Gramados esburacados, iluminação estranha em que a noite parece madrugada. Passes, segundo o manual da evolução tática, só entre zagueiros, quando muito com um volante no apoio na saída, para no entrelinhas tudo virar passe errado e bola perdida. Não é espetáculo; é martírio.
E agora, com o isolamento social da quarentena interminável, sem o componente estádio. Quando se retira a experiência de viver a cancha boleira, esta que fisga torcedores pelo sentimento de pertencimento, pela emoção à flor da pele, resta tão somente a feia e crua realidade.
De rebote, as torcidas se unem para manter a chama acesa. Mas nas redes sociais, feitas para maiores de 18 anos, onde cada um tenta obter o imaginário título de torcedor-mor, sem aceitar vírgula de contestação. Qualquer referência negativa é rebatida com a força do ódio, passando pano para limpar a baba da ignorância que escorre pela boca.
Estes, no entanto, estão convertidos, embora num simulacro questionável de razoabilidade civilizatória. A questão não é com eles. A questão é com a próxima geração que vem vindo.
Geração que já está mais pra lá do que pra cá. Está com pé e coração mais na Europa que na arquibancada do estádio da casa. Que está passando por um curso intensivo de esquecimento das raízes brasileiras do ludopédio e se entregando ao canto da sereia do espetáculo-arte do futebol do velho continente. E nessa rendição não existe fidelidade. Mudar de time a outro é mais que permitido: é aceitável. Assim, o acompanhamento virtual segue o ídolo e o time bolas da vez, o que vai render frutos dispendiosos e lucrativos mais à frente.
No absurdo do futebol no Brasil – seja em época de retorno, seja em qualidade da prática –, coloca-se em risco uma geração de aficionados perdidos. O elo da emoção se enfraquece. E quem há de questionar a validade da transferência de torcida quando, depois de um arranca-toco sub-medíocre, assiste-se a um jogo em que o infante olha abismado para a tela e suspira: então isso é futebol?
Não é, pelo menos não em sua completude. Mas não há demonstração possível na paralisação. O que torna toda a cena ainda mais triste diante da impotência.
Gabriel Galo é escritor.
Foto: Rafael Marchante/Pool via Getty Images
Artigo sobre a distância entre o futebol do Brasil e o da Europa foi publicado na seção de esportes da edição impressa e no site do Correio da Bahia em 17 de agosto de 2020. Link AQUI!
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