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A origem não limita; o preconceito, sim

A origem não limita; o preconceito, sim


Primeiros agrupamentos sociais

Susanne Shultz,
Dra. Susanne Shultz.

Durante muitos anos, imperou na comunidade científica uma ideia de que o ser humano, em sua origem, organizava-se em duplas que formavam unidades familiares e que estas pequenas células familiares, aos poucos, uniam-se a outras células, formando gradativamente uma certa organização social. Até que em 2011, a antropóloga Susanne Shultz conduziu uma pesquisa na Universidade de Oxford que alterou a forma de perceber a evolução de organizações sociais.

Analisando o comportamento de 217 espécies de primatas, que se organizam, em linhas gerais, em sociedades similares, independentemente de local, rodaram modelo estatístico que comparava a quantidade de mudanças evolutivas no tempo dessas sociedades se o primeiro ancestral comum vivesse em grupo ou em par. E para surpresa dos pesquisadores, a sugestão mais factível é a de que esse ancestral solitário começou a se relacionar em grupos de ambos os sexos antes de formar um casal.

Oxford, universidade,

A Universidade de Oxford, onde o estudo conduzido por Susanne Shultz foi realizado, na Inglaterra, é das instituições de ensino mais antigas e respeitadas do mundo. Estima-se que o local é centro de ensino desde 1096. Na imagem, a famosa Radcliffe Square, dentro do campus da universidade.
Foto: Elizabeth Nyikos

Parece óbvio do ponto de vista como enxergamos uma sociedade. Antes de nos descobrirmos seres capazes de nos reproduzirmos, nos tornamos parte da sociedade na qual estamos inseridos. A diferença está no aspecto natural da coisa: viver em sociedade é uma construção. Só que o estudo mostra que o modelo de organização em grupo, com regras sociais estabelecidas, é tão antigo e primitivo quanto a reprodução. É questão de sobrevivência da espécie.

Somos, primariamente, seres sociais.


Choque de culturas e desenvolvimento

Se a convivência em grupo foi fundamental para a sobrevivência da espécie, construção tão inata quanto a reprodução, ativando um primitivo sentimento de segurança quando inserido num grande bando, foi no choque de culturas que o ser humano efetivamente se desenvolveu. A interação com gente de fora, com outros conhecimentos, adicionaram elementos para que estes grupos fossem ficando mais heterogêneos e completos.

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Capa da terceira edição da Papo de Galo_ revista.

Na edição #3 da Papo de Galo_revista, antropólogos, sociólogos e historiadores trouxeram uma visão alinhada com relação à compreensão de agrupamentos sociais, sejam quais forem: etnias culturais se modificam no tempo. O conservadorismo extremado, pois, é uma anormalidade histórica, porque impossível.

Está no recebimento de novos conhecimentos e informações que efetivamente evoluímos, seja com tecnologia, seja com estudo, seja com organização social. E quando falamos de seres humanos, que possui o componente pensamento crítico nessa curva evolutiva, as diferentes maneiras de organização social podem ser observadas e compreendidas em abundância. Se nos organizamos em grupos, estas organizações seguem regramentos distintos, mesmo dentro da mesmoa localidade e da realidade de um único indivíduo, que interage em círculos culturais diferentes. Conforme fala do sociólogo Leonardo Antonio à edição #3 da Papo de Galo_revista:

Somos um mosaico de identidades que se organiza de maneira incongruente e inconsistente.


Enclausuramento na bolha

Uma das vantagens e males do mundo moderno é o amplo acesso à informação, no que se convencionou chamar de Era da informação. A cada dia , é gerada e consumida mais informação que a soma de séculos anteriores. Vivemos todos os dias nos batendo com um mundo de dados, muitas vezes indistinguíveis de invenção ou fato, e nos sentimos sobrecarregados. Filtrar tamanha quantidade de notícias e conhecimento é tarefa desgastante. Para facilitar, procuramos nos manter protegidos dentro daquilo que compreendemos e aceitamos como verdade.

Adicionalmente, o mundo das redes sociais facilitou um enclausuramento ainda maior das pessoas em suas bolhas. Este comportamento foi impulsionado pelos algoritmos das próprias redes sociais, que descobriram que maior seria o engajamento quanto maior fosse a intensidade do sentimento despertado. Descobriram as redes que especialmente os sentimentos negativos, como ódio e repulsa, aumentam o tempo logado do usuário no sistema.

Assim, já preventivamente recolhidos, passamos mais tempo cercados de visões de mundo iguais às nossas, não importando quão nociva socialmente ela seja. Com isso, minimiza-se ao extremo o contato com o diferente. E diante de um forçado tecnologicamente e aceito por conforto, vamos criando o ápice do extremismo de perfeição de ser no mundo: ora, se esta quantidade de gente pensa igual a mim, natural, portanto, que eu seja o modelo a ser seguido.

Bolhas de confirmação de vieses leva a superestimar a prevalência de nossas perspectivas e inibe diálogos, no estrito senso da palavra, que é “entendimento por meio da palavra”. Se uma certa visão é considerada obrigatoriamente a correta, por imposição, não há diálogo possível.
Arte: Rose Wong, para a NBC News.

A submersão nas redes sociais, ao mesmo tempo que ativa o medo e a repulsa ao diferente, inverte o conceito de desenvolvimento e de sociedade. Estimula-se que o indivíduo não seja fruto de interações sociais abrangentes e humanas, mas sim que se instale na mente que a sociedade deve refletir a visão de mundo do indivíduo.

É uma subversão extrema de elementos primitivos, promovendo uma rinha de sentimentos mais suscetíveis à manipulação. Estimula-se o medo -catalisado pelos preconceitos historicamente disseminados na sociedade-, cria-se uma sensação de pertencimento pelo agrupamento da bolha, prolifera-se ideais de vilanização do outro e, pronto: a sociedade vira uma entidade ao modo pessoal. E o inimigo é, logo, qualquer outro que não se encaixe naquela restrita visão validada e alimentada pela bolha.


Xenofobia e preconceito de classe, a origem da repulsa ao outro

Toda organização social implica que os indivíduos nela inseridos exerçam certos papéis sociais. E a própria estrutura premia alguns seres mais que outros. Status e influência social decorrem deste sistema de premiação e aceitação, seja este papel natural ou obtido. Assim, criam-se camadas de poder dentro dos grupos. Como consequência, indivíduos são categorizados de acordo com seu papel social -menos ou mais importante-, instituindo uma das primeiras formas de preconceito, inerentes a qualquer estrutura social: o preconceito de classe. Os de cima se enxergam merecedores das benesses que possuem, olhando os outros com superioridade autorizada pelo status social.

O crescimento das organizações sociais fez com que fosse desenvolvida uma outra abstração moderna: a formação do Estado-Nação. Sob a bandeira de um líder-maior de um Estado central que subjuga todos os inseridos num certo território às suas leis e ordens, estabelece-se a diferenciação de origem. Naturalmente incapazes de diferenciar hierarquias que não a própria, o outro passou a ser o “selvagem”, aquele que não obedece ao comando supremo.

Julio Rocha,
Julio Rocha.

Surgiu, assim, a visão clássica no Direito do que é povo. Julio Rocha, professor e Diretor da Faculdade de Direito da UFBA, explicou esta abordagem em entrevista à Papo de Galo_ revista #3:

A formação jurídica associa a ideia de povo à nação e de nação ao Estado. Então, classicamente, a noção de povo remete a uma perspectiva de unidade e de identidade. E ao mesmo tempo, um povo, se vincula, se exerce e se estabelece a partir de uma perspectiva territorial chamada Estado.

Com isso, criou-se uma nova forma de rejeição automática ao outro: a xenofobia. O outro, ligado a outro Estado-Nação (ou, talvez, a nenhum Estado organizado), era o selvagem, aquele que deveria ser convertido, domesticado e obrigado a obedecer os conceitos estabelecidos pelo Estado-Nação, unificados no modelo perfeito de vida em sociedade.

Aquele outro, do medo primitivo que nos levou a nos organizarmos em grupos para garantir proteção, o outro que pertence a grupo distinto ou é de outra espécie (o ser humano é relativamente frágil diante de predadores históricos), passou a unir estas classificações inconscientemente. O outro tornou-se em espécie, tida inferior, porque assim dizem os chefes do Estado-Nação.


Os perigos de preconceito propagado pelo Estado

Segundo o professor Julio Rocha, “a ideia clássica de nação-povo é uma ideia que atende a um modelo questionável.” Isso porque, usualmente, ela está atrelada a um modelo ideal de ser no mundo. No caso do Brasil, uma impossibilidade.

Nós somos uma país fundado na pluralidade, na multietnicidade. Mas nós vivemos um dilema de origem, de reconhecimento. Nós precisamos nos reconhecer quem nós somos, que razões identitárias nós temos.

Professor Julio Rocha
Ordep Serra,
Ordep Serra.

Este entendimento é complementado pelo antropólogo Ordep Serra. Também em entrevista à Papo de Galo_ revista #3, o professor aposentado afirma:

Não há conflito entre a ideia de diversidade étnica, religiosa, ou qualquer outra, e a noção de povo. Há de se reconhecer essa diversidade, não só porque se está sob a regência do mesmo estado, mas porque se criam laços de comunicação, porque se dialoga. Povo é um diálogo e reconhecer a si e ao outro é fundamental.

Associar a ideia de povo a de uma unidade homogênea é extremamente perigoso. Isso sempre levou para projetos autoritários de dominação e até para genocídios.


Outros preconceitos e estereótipos preconceituosos

Alex Castro.

À ampla gama de preconceitos possíveis, o escritor Alex Castro chamou de outrofobia. Segundo sua própria descrição:

Outrofobias.f. Rejeição, medo ou aversão ao outro. Termo genérico utilizado para abarcar diversos tipos de preconceito ao outro, como machismo, racismo, homofobia, elitismo, transfobia, classismo, gordofobia, capacitismo, intolerância religiosa etc.

Estas denominação abrange o extremo da atribuição dos 2 preconceitos inatos. Estabelece-se, por meio de outras e arbitrárias classificações, relações de superioridade (todo preconceito predispõe inferioridade do outro) e vilanização do outro. Numa sociedade que se organiza cada vez mais em bolhas, o outro vai adquirindo classificações cada vez mais de cunho individual.

O extremo da xenofobia é quando estabelecemos o eu como Estado-Nação, que demoniza o outro por mínima incompatibilidade.


O Direito como indutor da redução do preconceito

No âmbito do Direito, quatro são as maneiras de se combater preconceitos, direta ou indiretamente, e possui complexidades evidentes, que devem ser avaliadas num debate amplo:

1A primeira está na tipificação estrita de preconceitos como crimes no Código Penal. É o que já ocorre com a homofobia, igualada ao racismo em gravidade. Ainda outros podem entrar nesta classificação, a depender da urgência do tema e da pressão popular.

2A segunda diz respeito ao acesso aos bens e serviços públicos independentemente de origem. Isso vale a qualquer das 3 esferas da federação. Cidades como Barueri, um dos municípios mais ricos da Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, negam acesso à saúde municipal a moradores de cidades vizinhas. Já Roraima, onde a imigração de venezualanos causa fortes ondas xenófobas, atua-se para cercear o acesso destes estrangeiros em solo brasileiro a bens e serviços.

3A terceira envolve as políticas de cotas. Para além da reparação social, as cotas forçam a convivência em pé de igualdade de pessoas que normalmente não teriam acesso àquele ambiente. A heterogeneidade entre iguais dilapida o preconceito, porque a percepção de diferenciação não prospera quando há interação com o outro sem preconceito de classe.

4A quarta, e mais distante evolução, contempla uma legislação que respeite a plurietnicidade de culturas e povos que se organizam diferentemente do Estado central brasileiro. Há modelos estabelecidos em países como Bolívia, Colômbia e Espanha, que estabelecem regras em que prevalece a organização de poder dentro da realidade destes povos sobre a lei central.

Estas ações são cerne de uma democracia real, humana, ampla e irrestrita, que tenha como valor fundamental a tolerância e a diversidade.


O que limita é o preconceito

Se é a interação livre de culturas e de ideias que promovem desenvolvimento, num choque constante de saberes e jeitos de ser no mundo, o preconceito, por definição, é limitador. Quando nos fechamos em bolhas, estabelecendo uma maneira correta de existir, estamos nos fechando à evolução, cometendo a arrogância suprema de entender que somos a versão mais avançada de ser humano que existe.

É no embate de narrativas, sotaques, técnicas, cores, cheiros, religiões, artes e muitos outros elementos mais que damos passos à frente rumo a uma sociedade mais inclusiva e igualitária. Essa igualdade, pondere-se, não se refere à homogeneização de comportamento, mas sim, dentro outros, no acesso a bens e serviços, na garantia de direitos, e na competição que se paute pela largada em igualdade de condições: conhecimento, finanças, educação, saúde, segurança, não-preconceito.

O professor Ordep Serra definiu com precisão este tema:

Quem tem algum amor pelo Brasil tem que bater-se contra a desigualdade e defender a diversidade. A desigualdade é o problema, a diversidade não. Nós somos diferentes. E daí?

(Eis aqui um uso correto da expressão “e daí?”)

Assim poderemos, enfim, voltar a sermos seres primária e intrinsecamente sociais, conforme comprovou a pesquisa da Dra. Shultz. E isso implica romper as bolhas nas quais estamos inseridos. É nos abrindo para a diversidade e o ineditismo do mundo que podemos nos tornar versões melhores de nós mesmos, individualmente e em sociedade. É a diferença de origem que nos empurra para frente e nos afasta do retrocesso civilizatório.

Gabriel Galo é escritor, administrador e empresário. É colunista do Correio da Bahia, do Futebol S/A e do Arena Rubro-Negra, editor do papodegalo.com.br e já passou pelo Huffpost Brasil. É autor de “Futebol é uma Matrioska de surpresas” (2018), “A inescapável breguice do amor” (2020) e “Não aperte minha mente” (2020). Escreve todas as quintas-feiras no Aprendizagem Jurídica.


Leituras recomendadas

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Papo de Galo_ revista #3, Viva o Povo Brasileiro, organização de Gabriel Galo.

Sapiens: uma breve história da humanidade, de Yuval Harari.

Alex Castro, outrofobia, preconceito,

Outrofobia, de Alex Castro.


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Artigo sobre origem e preconceito publicado no blog do Aprendizagem Jurídica em 15 de outubro de 2020. Link AQUI!


Para ler mais artigos meus no Aprendizagem Jurídica, clique AQUI!


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