A construção de mitologias é elemento histórico poderoso. No tempo, é a narrativa que sobrevive que ganha status de verdade absoluta. O futebol, por óbvio, segue esta mesma lógica. Ou melhor, por ser elemento fundamental para entender o Brasil, é todo ele baseado em mitologia.
Em 1969, o Santos fez alguns amistosos em África. Na volta de um na Nigéria, Armando Nogueira fantasiou exagero em crônica a importância do Santos de Pelé por ter parado uma guerra. Não era fato, mas era bonito. Virou, pois, verdade.
Em transmissões, repetem-se análises sem qualquer fundamento, mas que estão enraizadas na cultura. Exemplo é o 2 a 0, que virou “placar perigoso”, com alguns esticando o argumento rumo ao nonsense, afirmando ser esta parcial ainda mais perigosa que o 1 a 0. Tem sentido? Absolutamente nenhum. Mas virou verdade pelo uso recorrente.
Assim como nós, torcedores, elevamos nosso potencial individual a definidor de resultados. Se uma borboleta lá na casa da zorra provoca um furacão sei lá onde, certamente é a cor da cueca, ou aquela camisa velha, ou ainda ir ao estádio com alguém que forma a parceria invicta, o que vai garantir o placar favorável. Sal grosso no pé da trave, banho de cheiro, macumba, escolha a sua superstição: é ela a chave para a glória.
Estes mitos de exaltação do esporte, observe-se, exageram o aspecto fantástico, ampliam a magia para o sobrenatural. O Santos de Pelé pausa conflitos armados. O placar dito perigoso traz à atenção a necessidade de alerta, de tudo pode acontecer. A superstição e a mandinga incluem o divino na equação do acaso do esporte.
Narrativa de controle
Só que as narrativas de antanho vão perdendo força para uma nova leva que, em vez de atribuir contínuas possibilidades infinitas, reduzem o esporte a um duelo de robôs em que a estatística há de prevalecer e as explicações são mecânicas, saídas de livros com teses tais e palavras difíceis.
Neste 2020 abismal, fala-se abertamente a falácia de que futebol não envolve política. Não importa a história, o dirigente-político, o mal-intencionado vestindo mantos para se promover, e muito mais. Não é que não possa envolver esporte e política: não se pode envolver a política que desagrade o sensível torcedor.
Moda da vez, a saída apoiada ganha status de soberania e evolução inconteste do esporte. Mas dizer-se apenas mais uma forma de praticar o ludopédio não valoriza o sentimento de modernidade de analistas, que podem distribuir vocabulário grã-fino, num orgasmo pseudo-acadêmico de apreciação verborrágica. Nessa onda psicodélica, até chutão de goleiro nos acréscimos em final de Libertadores vira análise tática com ares de planejamento.
Também, para desespero da matemática, o empate vira bom resultado. Nas várias divisões, empates são a tônica e o objetivo, como se o glorioso Oeste fosse desbravador de tendências da mediocridade. Aliás, o Oeste hoje sequer empata: só perde, o que me parece o destino natural de quem prolifera absurdos para que se olhe para o ponto suado como boa notícia.
Robotização, mecanização
Estas narrativas, para além de desmistificá-lo, atendem a um chamado de robotização do futebol. Se a política exagera sua interferência, se a tática é pilar da organização, se o empate é resultado possível, é a soma do que se fala no ambiente que preocupa, insistindo em diminuir o imponderável.
É assim que se definha a alma do futebol, colocando em seu lugar simulacros de equações controladas por vídeo game, em que basta organizar a tática, selecionar atletas e apertar botões na hora certa para que tudo esteja sob controle do grande irmão.
Gabriel Galo é escritor
Artigo sobre mudança de narrativa no futebol, do impoenderável ao controle, foi publicado na edição impressa e no site do Correio da Bahia em 19 de outubro de 2020. Link AQUI!
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