Acabei de adotar uma cachorrinha em uma feira de adoção na Cobasi de Alphaville, em Barueri, SP.
Ouvi a melhor coisa que podemos ouvir nesse momento: “Ela já vem castrada e vacinada, senhor.” Invejei a cadelinha.
Parei nas gôndolas para abastecer o apartamento com apetrechos para catioros. No caixa, suspeitei que levava para casa não um cachorro mas uma estudante de medicina, sugar baby sem pack de nudes.
A danadinha vagava desconfiada descobrindo os cantos do novo espaço. Preparado psicologi-camente para o desafio de educação do xixi no tapetinho, bastaram duas idas ao jornal sanitário e, pronto, treinada estava.
Vejam que deleite: além de vacinada, a cachorrinha aprendeu a fazer xixi no tapetinho sem esforço. Já é melhor que a maior parte das pessoas que eu conheço.
Mas no passar das horas, a relação permanecia um tanto distante. Entendo, claro, evoluído que sou, a aflição da bichinha, absorvendo tanta coisa nova de uma só vez.
Eu, porém, ansiava por aquele primeiro momento de orgulho que selaria a paternidade. Aquele instante em que a olharia com ternura, sangue de meu sangue.
Assistia preguiçoso à TV, enquanto ela ali indiferente, como gente assoberbada, que só se entrega à alta cultura. Até surgir Os Simpsons na tela.
A cadelinha ainda sem nome – catarse de pai novo tem seu tempo – se levantou tesa e observou fixamente a tela.
Aí, emocionado que fiquei, não sou capaz de dizer ao certo se a menina obedecia ao barulho da chupeta de Maggie ou se salivava diante do cabelo de Marge, que, segundo meu teste Rorscharch pessoal e intransferível, se parece a um osso suculento. Empático, sublimo o azul do cabelo, afinal, dizem por aí que cachorros não enxergam cores, veem tudo em preto e branco, o que é uma pena, porque nunca serão capazes de pilotar um avião.
E nessa se mãe ou se filha – comentários maldosos sobre minha semelhança com o Homer serão sumariamente ignorados – ela, filha minha, ora pois, Maggie ficou.
Ela curte Os Simpsons. Entende? Conexão.
Correremos os campos, ela com um osso à boca, eu com minha cerveja em mãos, chamando-a ao som de chupeta, tchup-tchup-tchup, e ela viria ao carinho do pai em câmera lenta.
Minha filha.
Não fiz, mas é como se tivesse. Chegou aqui no que parece ter sido ontem – e foi –, mas em breve não será mais ontem e assim ainda parecerá.
Maggie. Tão bonitinha. Bati foto, coloquei no Instagram. Está definido: sou pai de pet.
Minha mãe, que me acompanhou na empreitada da adoção, se sente avó. Pegou a cadelinha no colo quando ainda nem minha era, e, Nazaré Tedesco que só, se não grito no meio do povo, saía correndo levando a cachorra embora.
E porque meto essa parábola mais cheia de curvas que a Sofia Vergara?
Porque minha mãe, dia dessas, pré-Maggie, me solta:
“Ain, não vou tomar essa vacina. Não está testada, só tem 50% de eficácia. E se eu ficar doente com ela? A outra é melhor, pipipi popopó.”
Respirei fundo, revirei os olhos, e soltei, sempre com muito amor e na melhor das intenções, um sonoro esporro.
Em algum momento, minha mãe pegou uma direita errada e se perdeu no emaranhado de desinformação do Whatsapp. Passa fins de tarde a assistir ao programa do Datena e sofrer pelo mundo ‘que não é mais o mesmo, onde vamos parar?’
Muitos anos atrás, não hesitou em vacinar os filhos, conforme o rito de boa mãe. Assim como eu vacinaria minha filha quase sequestrada pela avó – chamei a Maggie de filha? Perdão.
O neurocientista francês Michel Desmurget, autor de “A fábrica de cretinos digitais” (2019) afirmou em entrevista à BBC que em países onde os fatores socioeconômicos têm sido relativamente estáveis há décadas, os nativos digitais são os primeiros filhos a ter um QI inferior ao dos pais, tendência documentada em diversos países da Europa.
Peço licença a Desmurget, mas desconfio que essa informação não seja a mais correta. Não estou dizendo que os QIs das novas gerações não estão se atrofiando – dado um cenário complexo de compreensão da equação, mas simplifiquemos a abordagem para fins de concisão cronista.
O que mais me espanta é que, varrendo o meu Facebook, vejo diversas almas que, assim como minha mãe, se entregaram à estupidez. E se as novas gerações estão mais burras que essa que decai, onde vamos parar, Datena?
Daqui a pouco, Maggies vira-latas formarão a elite intelectual que dominará os humanos, eliminados sem imunidade por doenças contagiosas. Mas nem assim poderão pilotar aviões. Essa vantagem sempre teremos.
Crônica de Marcio Miranda e Gabriel Galo para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 46 e 47.
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